20.1.20

Guerras de hoje


Esmiuçando um país

Gennady Privedentsev, artista russo.

Um país não é aquela roupa velha que se veste de quando em quando, longe dos estranhos, na intimidade.

Um país não é uma saudade, sequer uma nostalgia miúda. Não é uma música que seu pai cantava enquanto preparava o cigarro de palha. Não é a lembrança que sua mãe mantém de um antigo amante.

Não é uma tarde com crianças correndo no quintal. Igualmente não são dois vizinhos batendo papo pela janela de suas casas.

Um país não é uma bola na trave. Não é um grito inesperado daquele homem que caminha em silêncio. Qualquer muleta abandonada na calçada é apenas uma potencial metáfora para o país.

Por mais que se pense que um país seja suas sextas-feiras e feriados, ele não é isso. Tampouco é o domingo, no qual velhos casais reencontram o desejo.

Um país, veja bem, não é o conjunto de suas desgraças. Não é o sorriso do velho banguela ao ver seu neto banguela rindo do vento que lhe assopra o rostinho.

Um país não é nem a chuva ruidosa (muito menos a garoa) nem a mulher que, no meio da rua, parece chorar e ao mesmo tempo sorrir. Não é a gargalhada de um grupo de adolescentes.

Alguns querem que um país seja o aplauso comovido para aquela cantora cuja voz é apenas um fiapo da voz de quando ela estava no auge. Esqueçam. Um país não é a vassoura que varre a calçada.

Um país está longe de ser um assalto a banco. Do mesmo modo, está longe de ser um ato altruísta de um mendigo. Até poderia ser, mas não é, um beijo que o senhor violento, às escondidas, dá em uma flor cujo cheiro é mais intenso que a cor. Um país não é a sua literatura ou seus muros pichados.

Um país não é uma greve geral. Não é um dia sem consumir carne ou um dia sem consumir ou um dia em que se vai de visita ao túmulo dos pais.

Um país não são as crianças na escola. Não são os jovens na escola. Não são os adultos empregados. Não são nossas certezas ou sonhos.

Um país não é um filme de terror — ainda que um filme de terror possa ser um país; ainda que uma comédia possa ser um país. Ainda que a tristeza possa representar o país. Ainda que a alegria faça parte das saudades de um país.

Um país não é a sabedoria. Não são os acepipes servidos em reuniões festivas. Não são as quitandas cuja receita é anterior ao próprio país. Um país não são seus tambores e festas.

Um país não tem o rosto que os mapas dizem que ele tem.

Um país — o nosso — é um daqui a pouco urgente.

15.1.20

40 anos no Rio

Cheguei ao Rio no dia 5 de março de 1980. Vim depois de passar as férias em Passos, mas eu já não morava lá, saí de minha cidade em 1977, mudando-me para Belo Horizonte.

Um dia talvez eu escreva alguma memória sobre esse período, mas hoje minha intenção é apenas justificar porque, na efeméride dessa data, resolvi lançar um livro de poesia.

O fato é que a poesia foi minha primeira manifestação artística. Ainda criança, fazia musiquinhas e, um pouco mais tarde, compunha músicas bem precárias. Dessa experiência o que ficou foi a poesia.

Em 1986, minha irmã Patrícia trabalhava na Imprensa Oficial de Minas Gerais, e ali se fazia (e ainda faz, creio) o Suplemento Literário de Minas Gerais. Ela sabia que eu escrevia, conhecia minhas músicas. Como lá no Suplemento circulava um conterrâneo nosso, o premiado poeta Antonio Barreto, a Paçoca levou um material para ele avaliar. Acho que mandei uns cinco ou seis poemas. Passado um tempo, recebi tudo de volta com anotações (tenho tudo em casa, sabe-se lá onde). Mais surpreendente, três foram publicados.

Quando me derramo de agradecimento ao Barreto, ele diz que não teve essa de QI, não. Seu relato é que os poemas foram parar nas mãos de pareceristas e a decisão final foi sugerir a publicação de três. Seja como for, considero o mestre Barreto um dos meus padrinhos literários. Ele, o Noll (que fez o prefácio de meu primeiro livro, Contos de homem) e o Marco Túlio Costa (que me inventou cronista).

Para comemorar meus 40 anos de Rio, pensei em escrever uma série de crônicas memorialistas, mas, quando dei por mim, não teria tempo para preparar um livro a ser lançado em 5 de março de 2020. É uma tarefa hercúlea para um sujeito desmemoriado e que não dá muito valor ao que viveu. As duas coisas indicam que produziria um péssimo livro.

Quando estive na Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (Gilberto Abreu, outro conterrâneo, meu ex-professor de história e escritor admirável, foi o homenageado), eu, Alexandre Marino e Nádia Monteiro trocamos umas figurinhas e eles se prontificaram a ler minhas poesias. Foi uma coisa linda e uma força danada. Depois pedi outras leituras (com respostas igualmente lindas), de Adriane Garcia e Alberto Bresciani. Isso sem contar o próprio Eduardo Lacerda, editor sensível, com pendores claros para a escrita e a edição de poesias.

Se tenho um livro de poesia, ora, façamos de seu lançamento a comemoração dos meus 40 anos na cidade maravilhosa, mas feia; de cultura inclusiva, mas de segregação; da beleza dos corpos, mas de clima infernal.

É um livro bom? Olha, todo escritor é vaidoso, mas eu, no caso da poesia, sou menos (já como contista e cronista, nem digo). Isso quer dizer que estou mais preocupado com a comemoração do que com a qualidade da poesia (todo escritor é mentiroso). De todo modo, acho que tem alguma coisa bacana, sim, ao lado de poemas menores, ruins de verdade. Na realidade, em tudo que faço (fazemos?) há essas duas porções. Passados 25 anos desde o lançamento de meu primeiro livro, já não alimento grandes ilusões. Escrevo porque quero falar com meu tempo.

Assim será. Ainda que formalmente não dedique meu livro a esses caras que me deram a força inicial, o livro é deles, em especial do Barreto.

Um brinde!

#nenhumapoesiaumaantologia

Lançamentos: 

                    15/02, em São Paulo (na Patuscada, Rua Murat, 40, Vila Madalena).

                    05/03, no Rio de Janeiro (local por ser definido).


Já em pré-venda.

6.1.20

Esqueça os famosos



Para dona Euza, Cristina e familiares do JC


Você conhece algum escritor famoso?

Foi o que me perguntaram quando participei, em 2018, de um dos eventos ligados à Feira Literária de Passos, minha cidade natal. A pergunta seca foi o ápice de uma participação tensa. Acompanhem.

Eu falava com alunos do ensino médio que não conheciam nem meus livros nem meu blog, na realidade, não sabiam nada de mim. Quando era para ser astro de um evento, me vi um zé-ninguém. Como sair daquela situação? Abri O bichano experimental (Editora Patuá), livro que lançaria no dia seguinte, e, apostando no humor como um bom jeito de iniciar o papo, li uma crônica a meu juízo engraçada. As garotas e os garotos sequer ensaiaram um sorriso.

Minha única certeza era de que a conversa deveria servir-se da literatura, então pensei em ler outra crônica do livro. Adolescentes gostam das coisas que dialogam com seus calores. Agarrado a esta ideia, li "Arranjos fresquinhos para uma velha cantiga pornográfica e outra antipatriótica". Eles riram, as duas meninas sentadas logo na primeira fila se deram as mãos, o ambiente desanuviou, passamos a falar uns com os outros. A leitura certa, na hora certa, concluí.

Passado o embaraço inicial e alcançada uma certa cumplicidade, estava preparado para tudo, mas talvez não para a singela questão, que, uma vez formulada, fez meu cérebro ecoar incessantemente: famoso, famoso, famoso. Com certeza, o meu famoso seria diferente do famoso daqueles jovens. Na minha lista João Gilberto Noll, Maria Valéria Rezende, Stella Mariz Rezende, uma parte da fina flor da literatura com quem mantenho laços afetivos. Como seria a deles? Youtubers da hora, best-sellers de sempre, enfim, as celebridades daquela semana? Estávamos num impasse, e eu poderia elaborar um ensaio tresloucado sobre a fama, mas não o fiz. Ao se dar conta da besteira que eu gaguejava como resposta, sabiamente a coordenadora encerrou a conversa.

Por que diabo gostamos tanto de famosos, dos famosos entre os famosos, dos midiáticos, melhor dizendo? Por associá-los a super-humanos ou a pessoas isentas das ziquiziras da vida? Hipótese medíocre, mas vai saber.

Não ligo para essa pompa incentivada pelo mercado e, de fato, dentro ou fora da literatura, conheço poucos que se encaixariam nesse perfil. Desse grupinho pequeno, o mais popular morreu na passagem de 2019 para 2020, o cantor sertanejo Juliano Cezar, com quem convivi antes de ele se tornar estrela do show business.

Não fomos os maiores amigos do mundo, mas compartilhamos algumas mesas de bar, mantivemos animadas conversas de jovens. Sempre metido com cavalos, o inicialmente peão de rodeios um dia me disse que seria cantor. E foi. Em nosso último encontro, o já conhecidíssimo artista e eu fazíamos compras na avenida da Moda da nossa Passos. Trocamos palavras amáveis, falamos de sua mãe e da Cristina, sua irmã e (ela sim) minha amiga, demo-nos um abraço. Ele era o cara humilde e educado de sempre e, mais importante, ainda sonhava.

Não acompanhei de perto a vida artística do Juliano, não gosto muito do sertanejo, principalmente do mais recente, mas sua carreira se meteu na minha vida. Conto.

Certa vez, no meu trabalho, recebemos por duas semanas um consultor americano. Era um senhor boa praça, fácil de lidar. No início da segunda semana da consultoria, perguntei a ele o que havia feito na folga. Mórmon, descobrira onde era a sua igreja. Além disso, passeara pelo calçadão de Copacabana e, principalmente, assistira a programas de televisão. Na programação dominical, ouviu algumas músicas agradáveis, com um quê da música country americana. Anotara o nome de um dos cantores, era o Juliano. No final do expediente, fui com ele a uma loja comprar discos do meu amigo.

Senti orgulho daquele moleque, de maneira alguma por ele ter sensibilizado um ouvinte estrangeiro; fiquei feliz ao constatar que o JC — não o homem do palco, não o apresentador de televisão, não o famoso, mas o velho e bom Lagartixa — realizara seu sonho de ser cantor. Boa, garoto!

Se pudesse voltar ao papo com os estudantes, diria que não há escritor famoso, há escritores. Muitos, assim como Juliano Cezar fez com a música, firmaram cedo seu compromisso com a literatura. A rapaziada deveria procurar por eles.