29.4.19

Roupas e ideias: o eterno retorno

Certa vez, li um comentário do Verissimo sobre moda. Segundo ele, desde sua primeira calça comprida sempre usou o mesmo modelo, e, assim, de vez em quando, estava na moda e, de vez em quando, fora.

O que está por trás da percepção do cronista é que não somos tão criativos, de modo que a novidade de hoje já foi novidade ontem. Nessa passada, não demorará muito e teremos mulheres com perucas de cabelos bem lisos ou com coques esculturais (Winehouse bem que tentou), uma febre dos anos de 1960. Estamos vendo o black power de volta, o que comemoro, pois não é um simples modo de os negros se verem ou se mostrarem bonitos, também é um jeito de serem potentes.

Esta crônica não é um ensaio sobre moda, suas idas e vindas, seus altos e baixos. Quem sou para saber disso? Não saio do jeans com camisa, em dias de trabalho, ou com camiseta, nos fins de semana. Ou seja, tornei-me um conservador à maneira de Verissimo. Se não é isso, o que é então? É essa história de vai e vem.

Se acontece com as roupas, com as ideias não é muito diferente. Quem diria que a castidade resistiria à revolução sexual da segunda metade do século XX? E ela está aí, meio na moita, mas não tanto. Tudo bem, é um exemplo besta, dou outro: a incivilidade. Ao longo da história, nosso país fez um quase completo genocídio dos índios, fez da escravidão, com crueldade, a forma de viabilizar a economia colonial e torturou sem cerimônia em suas ditaduras recorrentes, então nada mais natural que houvéssemos evoluído, entendido nossos erros e, a partir deles, estabelecêssemos novos limites de ação política. Visões de mundo distintas, tudo bem, mas, incensar torturadores, reciclar ideias caducas (por exemplo a de que a homossexualidade é uma doença ou um desvio de caráter ou de que não há o aquecimento global), inverter o sentido de nossa dívida histórica (quem deve é o índio, “com terra demais”, e os negros, “com a mamata das cotas”) já é um descalabro.


Vovô, aquele saudosista, abre o sorriso e balbucia na sala: “Até que enfim”. Quer dizer, balbucia num dia, fala alto e com as paredes no outro, no fim está discursando na mesa do almoço de domingo. Trágico: o neto aplaude e reproduz.

A boçalidade voltou à moda.

15.4.19

Verissimo, nem te conto


Na rua Barão de São Borja, quase esquina da Dias da Cruz, no Méier, vive meu traficante. Calma, meu traficante de títulos. Penso assim: não fosse por um título como “História Universal da Infâmia”, quem leria Borges, o cego? E Ramos, o preciso, sem a força de um sonoro “Vidas Secas”? No início da minha vida literária, por não ser bom de título e imbuído de boas intenções, recorri ao tráfico. Acabei viciado. Acontece.

O importante no parágrafo anterior, verdadeiro nariz de cera, é o Méier, pois, ao sair do encontro com o traficante, vi uma placa anunciando que Doroteia P., médium recém-instalada no bairro, abria as portas para promover o diálogo entre os que aqui estão e os que estão num plano superior. Sempre tenho um probleminha amoroso ou financeiro ou uma pedrinha nos rins, uma insônia, então pensei que um contato dessa dimensão poderia jogar luz sobre o meu futuro, aguçar a minha esperança, ou simplesmente permitir que eu falasse com papai ou mamãe.

Meire, a assistente, me deixou numa saleta com mais duas pessoas. Não tardou muito, ela voltou, pediu um minuto de nossa atenção e contou como fora o processo de desenvolvimento mediúnico de sua mestra. Doroteia P. gostava de fotonovelas e, não raro, passava pelos sebos do Centro à procura de velhas revistas. Sentia-se feliz ao comprar uma Sétimo Céu, uma Capricho, uma Grande Hotel que faltasse a sua coleção. Certa vez, encontrou uma correspondência do Instituto Universal Brasileiro endereçada a um tal Rolando Hole Medonho, que, por algum motivo, não chegou a abri-la. O Instituto era conhecido por promover, no mundo anterior à internet, cursos por correspondência. Como não houvesse nada que lhe interessasse, a fã de fotonovelas levou o pacote. Sem saber, adquirira um curso de mediunidade. Ao descobrir o que era, em vez de se desfazer do material, folheou o primeiro exemplar; em seguida, estudou a coleção. Em linhas tortas, Deus lhe indicara um caminho, na realidade, o caminho.

Meire nos contava aquilo, esclareceu, para mostrar como o acaso interfere magnificamente em nossas vidas. Foi além: naquele exato instante, o mesmo acaso lançava de novo seus dados. Fiquei boquiaberto, a ponto de me esquecer da novela que escrevia, do título comprado, do sofrimento da criação; da vidinha miserável, enfim.

Doroteia P. nos esperava em um cômodo pouco iluminado. Magra e com um longo cabelo solto, fez sinal para que sentássemos e disse que usaria a tábua de Ouija, o jogo do copo, como era conhecido. Justificou a escolha por seu aspecto coletivo, que nos permitiria, sem que um largasse a mão do outro, papear com os do lado de lá. Oramos o pai-nosso. Em seguida, a médium fez a pergunta inicial: “Tem alguém aí?” O copo deslizou para o “sim”. Era o momento de nossas perguntas, mas o espírito quebrou a regra e se adiantou: “Como está o Brasil? Vocês têm cuidado bem das estrebarias e da memória do venerável presidente Figueiredo?” O ambiente ficou tenso, e a voz insistiu: “Não vão me responder?” Doroteia P., tentando manter o controle da sessão, quis saber quem falava conosco. Eu sabia quem era: “É a Velhinha de Taubaté”. “Espertinho”, a alma disse com ironia. A médium, que nunca lera uma linha de como enfrentar uma situação semelhante, ordenou que eu continuasse a conversa. “Depois que a senhora morreu, em 2005, vítima do desencanto com o mensalão, o Brasil foi pra frente, foi pro lado e agora, justo agora, resolveu ir pra trás. Sendo assim, temos um vice que monta cavalos e um presidente que ressuscitou não só seu venerável Figueiredo, mas também Geisel, Médici, Costa e Silva e Castello Branco.” O copo correu pela mesa e indicou que a Velhinha suspirava. Que suspirava, não, que suspirou — “Ufa” — e fechou o bico.

Doroteia P. voltou à cena: “Alguém aí?” Outro espírito nos disse que acabávamos de fazer o bem a uma alma penada. A Velhinha cumpriu sua passagem, feliz da vida por saber que o Brasil resgatou o passado, aquele tempo “imaculado e grandioso”. Ouvi um tímido “mito” sair da boca de um dos que estavam ao redor da mesa e vi o outro fazer uma arminha com os dedos. A médium, aliviada, deu por encerrada a sessão. Cobrou cinquenta mangos de cada um, abusivo no meu modo de entender, mas nem reclamei. Ninguém reclamou.

Fui pro bar e, entre uma cerveja e outra, li o título comprado ao homem do Méier. Me pareceu meio malhado, mas, ainda mexido com a recente experiência sobrenatural, não dei bola para as questões literárias. Tive, isso sim, vontade de ligar pro Veríssimo e açodar sua curiosidade com um “nem te conto”. Não e não, seria uma baita indelicadeza, afinal se os autores não controlam a vida dos personagens — uma verdade inquestionável —, o que dizer da morte. Preferi abandonar a ideia, o cronista do Rio Grande não merecia saber que os personagens também mergulham na vida eterna — alguns acabam presos ao purgatório. Melhor que mantivesse a crença de que, uma vez que não é mais escrito, o personagem deixa de existir. Melhor que não soubesse no que deu sua crédula e inocente Velhinha de Taubaté.

1.4.19

Homens nas ruas do Rio

Com uma das mãos no bolso, coça a perna e respira fundo. A tristeza não mede esforços para se apoderar de seus sentimentos, homem. Ela é assim, sempre assim: dona da festa escura, da face incolor, do sono tolo. Mas o mar está bem ali — o sol também. Crianças correm no pátio das escolas, e gritam, e riem, e não sabem de nada. Respire, a tristeza não passa de uma coceira passageira.


Foto do autor.


Você, com essa pressa toda, já pensou se o pior for justamente chegar a tempo? Digo isso porque, das poucas coisas que me ficaram das lições de escola, uma pode não ter sido uma lição, pelo menos não uma formal. A professora do quarto ano primário (hoje, acho, quinto do ensino básico) disse para a classe que “mais vale perder um minuto na vida do que a vida em um minuto”. Autoajuda fajuta, mas... e se ela estiver certa? Contenha-se, homem, desacelere, o relógio não passa de uma frágil prisão para o tempo.

Passo por um homem que ri desbragadamente. Contagiado, sigo em frente rindo desbragadamente. Esbarro num jovem que me olha e, em vez de rir, veste a cara do espanto.

Encostado no poste, o rapaz de camisa estampada e cabelo grande preso num lenço observa os meninos que correm pelas ruas, todos com uma garrafa de plástico cujo conteúdo aspiram. O jovem — não parece rico, talvez goste de samba e toque bem tocado o tamborim, pode estar no centro para encontrar o pai, a mãe, quem sabe para comprar o material escolar —, bem, ele ao olhar os meninos loucos de solvente, começa a pensar em como tudo isso é triste. O que ele vai fazer com essa constatação ninguém sabe, é possível que se torne indiferente ao nosso fracasso. Mas talvez não.

 O senhor e a senhora conversam à espera da condução. Quer dizer, ele fala, fala muito, conta de fulano que foi traído, de sicrana que está endividada, da vizinhança que já foi sossegada e não é mais. A mulher balança a cabeça, muito raramente deixa que lhe escape um “sim”, um “não”, um “é mesmo?”. Ele acena para o 409 e, antes de entrar no ônibus, diz que foi um prazer conhecê-la. Ela dá um tchauzinho contido, e ele entende que o prazer foi todo dela.

Na rua Voluntários da Pátria, há uma leva de abandonados; são mendigos, muitos com problemas mentais. O senhor que vive na esquina da 19 de Fevereiro varre a calçada o tempo todo. Um rapaz sobe e desce a rua entre os carros e não se abala com buzinas, bicicletas ou freadas. Sentado na calçada estreita e tumultuada, um terceiro pede esmola às mesmas pessoas que obriga a andar pela rua. O que encontro aos sábados desistiu de me pedir dinheiro, mas, educado, não deixa de me cumprimentar. Além desses, a crise despejou pela rua viva e caótica uma verdadeira chuva de desesperados.

O catador de latinhas para diante da sede da Maçonaria da rua do Lavradio. Contempla sem pressa a esfinge metálica que adorna o edifício histórico. Não sei se, como é o senso comum, tenta decifrá-la, se imagina quanto ganharia com a venda da imagem derretida ou se espera por um inaudível grito de ferro que o console.

O senhor nem é tão velho, mas tem jeitão de velho. Ele anda devagar e chupa um picolé. Quando leva a boca ao picolé — e não o picolé à boca, fica vesgo.

O menino com o uniforme de escola pública e seu responsável (não arrisco a dizer que é o pai, parece tão novo) descem do ônibus. O menino diz alguma coisa, parece que externa um medo, mas pode ser que revele a incompreensão sobre um fato qualquer. O responsável larga a mão do garoto, se ajoelha diante dele e o abraça.

O policial bate o cassetete contra a palma da mão, em seguida, fecha e abre os dedos sobre o bastão. Faz isso mais uma vez. Outra. Outras tantas. O tédio usa farda.

Dois bêbados ziguezagueiam pela rua. Dois passos pra frente, dois pro lado, pro lado de cá, pro lado de lá. Pra cá quando é pra lá, pra lá quando é pra cá. Pra frente de novo. Pra trás. Opa, pra frente. Opa, pro lado. De cá? De lá? Por um triz, não caem. O mais alto para e, quase empertigado, brada: “Não disse? A terra é plana”.