28.11.16

Na segunda lâmina do espelho

Eu tenho medo de tigres — medo que não me protege de nada, não ando onde andam os tigres. Nem entre elefantes — e destes não tenho medo. Amo elefantes e tigres sem precisar andar no meio deles. Medo, de verdade, cotidiano, eu tenho é de lagartixa, vai entender isso. Mas igualmente amo as lagartixas, tão importantes no controle dos insetos. Não uso repelente, preciso das lagartixas, mas, por temê-las e sem deixar de amá-las, delas não gosto.

Eu enfrento a escuridão, desde criança eu a enfrento. Quando transito por uma escuridão de verdade, não por uma metáfora das trevas, posso manter os olhos fechados ou abertos, é indiferente. No dia em que morre alguém do meu afeto, caminho de olhos abertos pela escuridão, certo de que, assim, só verei o que estiver vivo. Não quero encontrar os mortos, embora deseje muito reencontrar os meus mortos. Nalgum dia.

O jogo que gosto é o pingue-pongue, cuja bolinha nunca está ali nem está lá, embora às vezes ela caia à minha esquerda, às vezes do lado oposto. Quem sabe da vitória e da derrota são os jogadores, a torcida sabe da bolinha, que não está ali, mas ali já esteve, e não está mais lá, ainda que lá já tenha estado. Eu sou a bolinha. A raquetada é a vida.

Quando assobio, salvo ao menos um gomo de cana. Quando chupo cana, os pássaros pialham de alegria. Nas horas em que nem assobio nem chupo cana, o que faço ou deixo de fazer é feito um vento no canavial, e um vento no canavial, cante ou não cante um pássaro, é um vento no canavial, nada além disso, como diria Caeiro.

Nunca andei num relógio, mas um amigo sim. Ele rejuvenesceu uma hora, por caminhar em sentido anti-horário, e, pelo mesmo motivo, envelheceu uma vida. De minha parte e por destino, só envelheci uma vida. Ele morrerá uma hora mais moço que eu.

A única certeza que tenho é que não me chamo Raimundo. Com isso, atravesso as ruas e peço um pingado no botequim. Não é pouca coisa, mesmo que o pingado seja servido frio ou que eu quase tropece num descuido da rua.

13.11.16

Nas paredes da cidade

Encontro em algumas paredes da cidade a frase “eu dei pra ele”, que circulou num primeiro momento de forma anônima e, soube-se depois, é de autoria de Anitta Boa Vida, artista visual. Leio a frase como reflexo do empoderamento feminino, o que me leva a concluir que “dar” não é mais nem motivo de vergonha nem expressão da subordinação da mulher ao homem. “Dar” e “comer” vêm ganhando um novo significado, sendo revalorizadas, e não seria exagero dizer que são atualmente palavras da mesma magnitude. Mal faço a afirmação, recuo um pouco, pois a violência ainda incide sobre as mulheres, a igualdade está longe de ser realidade. Apesar disso, e em alguns espaços, mulheres e homens se veem e se tratam com mais equidade, “eu dei pra ele” é a prova disso.

Não faz muito tempo, li um artigo no qual a autora chamava a atenção para o fato de que o xingamento expressa, no mais das vezes, uma voz masculina, heterossexual e preconceituosa. Alguém, ao ser chamado de “filho da puta”, recebe um selo de má origem (do qual não se livra), o de ter sido alimentado pelo leite sujo das profissionais do sexo. Porém, não é de hoje que usamos o “filho da puta” de forma positiva. “Esse filho da puta aqui é meu melhor amigo.” O mesmo ocorre com a palavra “puta”. “Eu tenho um puta amor por ela.” Não nos iludamos: a puta e o filho da puta continuam malvistos e marginalizados, ainda que, também é verdade, eles tenham, aqui e ali, gritado (sem grande sucesso) por seus direitos.

Quando a mulher diz, pelas paredes ou não, que “deu pra ele”, em vez de reforçar o estigma da sujeição, ela retira do armário sua voz, expõe sua força. Ela é mulher no sentido mais atual possível, apesar de as palavras escolhidas já terem servido a outro dono. Todos, ao transformarmos o xingamento em elogio, e as mulheres, ao tomarem as frases que as diminuíam para passar a expressar a própria potência, estamos dando novos significados às palavras.

Já vi, em pelo menos duas paredes do meu bairro, um pedido para que se libere a necrofilia. Haverá de fato um grupo que queira uma coisa dessas? Ou serão apenas pessoas dispostas a afrontar nossos valores, a testar nossos limites? Quem sabe não passa de uma turma empenhada em promover o escândalo? Será um grupo ou um solitário? Como saber?

Vira e mexe me deparo com intervenções urbanas cujo autor não se revela. Numa época de eleição, vi uns jovens carregando no peito cartazes do tipo “compro/vendo ouro”, só que, no caso, as palavras eram “compro/vendo voto”. Mais ainda, num dos galhardetes, reproduzia-se de “A Igreja do Diabo”, conto de Machado de Assis, o trecho no qual o Diabo pondera o seguinte: se é possível e até louvável vender o que é nosso, a casa, o chapéu, os sapatos —— tudo que está fora da gente, por que não se pode vender o que nos é inerente, a opinião, a fé e, logo, o voto?

Não sei quem patrocinava aquela intervenção, não sei como os cartazes foram parar no peito dos rapazes, mas sei muito bem que estava diante de um questionamento sobre a nossa democracia, a lisura das eleições, a eficácia de nosso acordo social e até mesmo, de modo mais abrangente, a hipocrisia, haja vista que não é segredo para ninguém o fato de muitos negociarem (comprando e vendendo) o voto. Não consigo enxergar um segundo propósito, o recado está dado de forma inequívoca e provocativa. A estranheza é não ser uma obra com assinatura, mas ela não é necessária ou é mesmo desnecessária.

Embolo muitos assuntos: autoria, linguagem, política, conquistas femininas. Tento dar um desfecho nisso tudo.

Conhecer quem escreve “eu dei pra ele” nas paredes é fundamental para saber se estamos no mundo que avança ou no que retrocede (o que seria o caso se a frase tivesse as digitais de um homem heterossexual). Como a frase foi assinada por uma mulher, concluo que a língua, ao usar velhas palavras, retirando-as da escuridão secular em que repousavam, também avança. A autoria, repito, não faz falta à provocação a respeito de nossa democracia, pois o que importa não é com quem dialogo, mas qual é o assunto proposto. No galhardete machadiano, eram jogadas na cara de todos as ervas daninhas que vicejavam, e continuam vicejando, no campo (agora mais do que nunca) minado de nossa democracia. Quanto à necrofilia, francamente, é triste ver tamanha estupidez turvar as paredes da cidade. Pior que isso, ter certeza de que seu autor jamais se revelará, pois, ao contrário do que questiona nosso processo eleitoral, que, ao se ocultar, se expressa claramente, o defensor da necrofilia será sempre um covarde, escuso e violento.