26.8.23

A fuga do espelho

Tenho estado com pessoas com quem só me relacionava pela rede social. É incrível, elas existem. Uma tem nariz bem torneado, o que não quer dizer que seja bonita; outra, orelha grande, o que não quer dizer que seja feia. Tem aquela cuja beleza não passa de um filtro; e aquela que é alta – como eu poderia imaginar? Uma, apesar de poeta, de boa poeta, é chata. Já outra, coitada, péssima no verso, na prosa, na piadinha que faz para agradar, é uma simpatia sem fim.

Continuamos tridimensionais, no corpo, e complexos, na essência. Não deixa de ser uma esperança. Afinal de contas, o mundo das redes é um sugador insaciável de nossa humanidade e, se é forte dizer que nos escraviza – melhor deixar a palavra para o que ela de fato representa, a exploração aviltante do trabalho, o uso do castigo físico e o rapto da liberdade –, cabe dizer que nos torna dependentes. Um vício. Injeta-nos uma droga que, antes de destruir o corpo, destrói a cuca. Sem um like, não vivemos mais e, para conquistá-lo, caprichamos nas fotos e escondemos as complicações.

Nos livros, encontramos personagens bastante intricadas, mas elas estão presas a determinadas situações, que se repetem a cada leitura. Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, não pode marcar um encontro com um dos leitores, desabafar, contar de seus planos de crime e, quem sabe, ouvir o outro e recuar da jornada de autodestruição e castigo. Tampouco Dmitri, o mais velho dos irmãos Karamázov, consegue abandonar sua existência de palavras e, pedindo que lhe paguem um chope, quer dizer, uma vodca, dialogar com quem, por ser mero espectador de seus dramas, é capaz de alertá-lo de que só se amassa o pão depois de colhido e preparado o trigo. Cito dois personagens de Fiódor Dostoiévski por ser ele um autor conhecido por criar personagens mais humanos do que qualquer um de nós.

Na rede social, somos as personagens. Eu faço o bobo; fulano, o militante; a universitária, a sedutora; o rapazote, o poeta romântico; o tiozão, o defensor dos bons costumes – todos lineares e em busca de uma dose de like. Mas é possível que, num chope, eu não seja tão bobo assim e o tiozão, na terceira tulipa, nos revele que, não sempre, mas também não em tão raras vezes, dorme de conchinha com um sobrinho ocasional.

Se o romance é um espelho que, ao nos refletir quase em minúcia, nos assusta, a rede social é um espaço sem meio-termo, de onde o contraditório (não confundir com treta) foi expulso. No romance, o autor torna complexo o já complexo; na rede social, enxuga-se o simples até que só lhe reste o simplório.

14.8.23

O fim de tudo

 

Há muito tempo eu escuto esse papo furado / dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou (Paulinho da Viola)


Ora acabam com o samba, ora com o conto, com a literatura, com a história. No entanto, meus amigos, o que vai acabar é o mundo, mas até lá nosso assombro, cuja voz é a música, a literatura, a escultura, a pintura, o cinema, a ciência, continuará se manifestando. Portanto não passa de um novo alarme falso o fim da crônica anunciado por Julian Fuks em sua coluna no UOL. Segundo ele, a pressa dos dias de hoje justifica essa morte. Não a pressa de todos, ele esclarece (ou imagina esclarecer), mas a do leitor. Ó, meu deus, a pressa está aí pelo menos desde a Revolução Industrial, claro que se ajustando às novas tecnologias. Ela nada mais é do que a subtração do nosso tempo pelos perrengues da sobrevivência, portanto a gente se adapta a ela não é de hoje. Alguns afoitos leem, no entanto a maioria nunca leu nem vai ler. Assim é a triste realidade.

O tique-taque comeu, sem mastigar, o tempo medido pela posição do sol, pelo desenho da sombra, pelas manifestações do estômago, e essa aceleração não destruiu nada que chamamos de arte, ao contrário, o romance – esse colosso que já teve mil, mil e quinhentas páginas, reduzidas hoje, na pressa de todos, inclusive dos escritores, a no máximo duzentas, com raras exceções – frutificou ali. Agora o vapt-vupt engoliu o tique-taque, e, graças às descobertas e inventos atuais dos tempos velozes, viveremos uma vida longa – morrendo, no entanto, mais novos do que nunca – e, como não?, produzindo arte e ciência. Portanto sejamos menos alarmistas. Quem dá as costas à literatura ao rés do chão é a grande imprensa. A crônica, que nasceu num cantinho sem proveito do jornal, foi expulsa dele. Sobra um Joaquim Ferreira dos Santos aqui, uma Martha Medeiros ali. Mas, em meio ao menosprezo, surge, na cabeça apaixonada e sábia de um jovem paranaense, essa Rubem, que dá guarida a mim e a outros onze cronistas (sem contar os que já contribuíram com ela), alguns inclusive com passagem pelos jornais. O Rascunho, publicação literária já longeva, mantém cronistas entre seus colunistas e, recentemente, o prêmio Jabuti abriu distinção ao gênero, o que sugere que se têm escrito livros de crônica.

Enquanto houver pobreza, haverá crônica. Enquanto houver histórias de amor, haverá crônica. Enquanto houver uma tristeza ou mesmo uma alegria sem motivo, haverá crônica. Tédio? Crônica. Ironia? Crônica. Um sujeito dado a caminhadas pela rua é um potencial cronista. Uma mulher tomada por uma lembrança erótica é uma potencial cronista. Um saudosista pode ser um cronista, ainda que chato. Uma atendente de petshop precisará apenas de um empurrãozinho (do talento) para escrever crônicas contando aonde chegou nosso amor pelos animais domésticos, sem se esquecer dos excessos por conta desse amor.

A crônica não acabará, assim como a história não acabou com o fim da Guerra Fria. Nosso problema é outro: se não cuidarmos do mundo – mantendo florestas em pé, esfriando o planeta um bocado, distribuindo a riqueza –, é certo que, pegos no contrapé, não teremos nem tempo de escrever a crônica do fim de tudo.