27.5.10

Algumas de minhas amigas e dois outros amigos


BbA

Ele ousa comer poesia desprezando o tempero.

CZ

 A inquietude move o corpo, este que pode muito. Pode, ao fim das contas, equilibrar-se entre o prazer e a dor. Se há um abismo entre esta e aquele, minha amiga se atira sem sombrinha sobre ele, pisando em um inexistente fio. As mãos livres servem ao propósito de (d)escrever essa passagem entre lugar nenhum e nenhum lugar.

DãoM

Era uma menina de arregimentar batalhões de amigos para as guerras pacíficas da juventude. Depois, passou a pegar touro a unha, trabalhando e, mais tarde, tendo seus filhos. Quase sumiu, pouco soube dela. Quando voltou, fez de sua casa um espaço ao qual todos vamos, como se fosse nosso.

MA

As mãos de meu amigo transferem um pouco de sua vida interna à madeira. Essa madeira, não raro peça de demolição, acrescenta à casa na qual será mesa, banco, enfim, um objeto útil e artístico, isso que ganhou de um homem sábio, nem por isso sobre-humano, nem por isso Deus.

MM

Ela, a despeito dos outros, até mesmo contra os outros, buscou o caminho das chamas. Tudo que flameja debaixo do tapete de água é íntimo dela. Se fosse a Chapeuzinho Vermelho, teria dado cabo do lobo e dos caçadores.

MMo

 Na tarefa impossível de tornar leve a vida, o humor cumpre o papel do homem que representa a mulher, do branco que se pinta de negro, do alto que dobra as pernas para ser o anão do próximo espetáculo. É um truque vil, por isso mesmo, admirável. Minha amiga faz do humor sua faca, não uma qualquer, mas aquela cujas dores produzidas se assemelham a cócegas.

NãoP

Nascemos com uma distância de uma semana e cem metros. Desde cedo, transformei-a, num olhar, em uma espécie de fada-madrinha que me protege. Se mexem com ela, mordo — com esses dentes que sua mãe jurava eu já tinha ao nascer. Sou, talvez ela saiba, seu anjo da guarda.

NL

Professora cujo ensinamento balança feito criança em jardins e praças. Ou mesmo balança onde não há redes, cipós ou cordas. Ela ensina como evitar as bacadas numa estrada esburacada. Depois, não professorando ilusões, grita pelo asfalto necessário, que o corrupto transformou em artigo luxoso de uso só dele.

SP

Conhece o desconhecido, mas não abusa disso. Revela-o de tal modo que ele, nunca, e nós, muitas vezes, não nos damos conta de tamanha revelação. Minha amiga pode, numa fagulha instantânea e fugaz, dar a entender que o belo é o desconhecido. (É quase.)

VO

Com um pé na matemática frouxa da poesia e o outro na pouca matemática dos negócios exatos, minha amiga se dá à tarefa de embaralhar o fácil e desembrulhar o impossível.

Grito

Sou coisa mansa
Vale sem água protegido por montanhas
Me faço ouvir pela mímica do sapato
Enquanto fujo
Pela mímica das minhas dores
Enquanto roo as unhas e o silêncio

Eu roo o silêncio
Na quebrada invariante da tarde
Quando o horizonte de tão próximo não se deixa ver

Adiante há um eco
Mesmo que eu gire o corpo e volte-me para o outro lado
Lá está ele, silencioso e abraçado à nuvem de algum passo estrangeiro
É um pássaro visível
É um pássaro na fronteira do arco-íris
É um eco de pássaro

Eu coo o café da noite
Para cair nos braços da escuridão chegada a tangos
E dançar feito nave neve nuvem – feito pó

Pó manso
Imensa brisa calada
Depositário de um grito cheio de graça com os terremotos.

9.5.10

O menino, a manequim e a chuva

À memória de Diego Frazão e à serena beleza de Luísa Brunet.


Duas notícias recentes chamaram minha atenção.
A primeira dava conta da morte daquele menino lindo, o Diego, o mesmo que aparecera na mídia, um pouco antes, tocando violino e chorando numa homenagem que os alunos faziam ao duplamente assassinado Evandro do Afroreggae.
A outra, num diapasão bem distinto, era uma entrevista de Luísa Brunet, na qual, entre outros assuntos, ela comentava que, aos 47 anos, não mantinha relações sexuais havia dois anos.
Diante de notícias tão díspares, pensava que, no caso do Diego, uma derrota pessoal (dele) crescia de significado, pois de alguma forma ele passara a representar a esperança por uma cidade menos violenta e mais justa, que desse oportunidades iguais a todos. No caso da Luísa, para além de algum possível desejo masculino (meu) que se viu desperto, perceber que ela, “a bailarina do Edu Lobo e do Chico Buarque”, a que não deveria ter problema algum, de fato tinha, de um lado me consolava por reforçar a constatação de que somos todos humanos, demasiadamente humanos, e de outro me deprimia: então não há um ser belo e feliz, um que possamos almejar ser, ainda que em parte?

Por mais tocantes sejam essas histórias particulares, a do menino e a da manequim, a tragédia comandada pela chuva de abril gritou mais alto, carregando minha atenção — imagino que não só a minha — para os seus efeitos destrutivos. Choveu no Rio. Choveu um rio. Choveu um mar para ser mais exato.
Ruas inundadas. Deslizamentos. Interdição de pontes e rodovias. Vidas levadas pela enxurrada. Não teve dó a chuva. Não é a primeira vez. Não será a última. Por que então a cada chuva assistimos à mesma reprise de tragédias?
O atual prefeito diz que não é com ele, é culpa do anterior. O anterior achava que era problema do anterior. Nessa sequência, Deus será o culpado, já que os homens públicos não chamam a si a responsabilidade que é, em grande parte e por voto popular, deles mesmos. Não quero cair na lenga-lenga de maldizer os políticos, misturando todos num único saco, porém friso: esses homens contam com o beneplácito de nossa cultura de poucas cobranças. E acrescento: o tempo é o desmemoriol que dá sete vidas a eles.
Cobramos pouco, é fato. Fazemos pouco também. O lixo, somos nós que o espalhamos pela cidade. O prefeito não dá conta de limpar as ruas, mas o caos seria menor se não as tivéssemos sujado.
O presidente, o governador, o prefeito, a justiça, enfim, todo o poder público vê nascer sob suas barbas milhares e milhares de favelas. Não fazem nada. Talvez um pouco por culpa, afinal, se não se pode construir um país sem desempregados, como exigir que os pobres vivam em terrenos “oficiais”, pagando os tributos relacionados a eles? Porém, mais do que isso, fecham os olhos porque vivem da pobreza. É paradoxal, ao desavisado, mas é a verdade.
Há outro ponto de vista. O dos próprios favelados. O que os leva a estabelecer-se numa encosta ou sobre um desativado aterro sanitário? Pitadas de ignorância? Gotas de desespero? Não tenho resposta. Nada (nem a razão) se contrapõe aos perigos conhecidos, levando-os a correr todos os riscos? Soa estranho.
A chuva levou consigo centenas de pessoas que se parecem mais com o Diego do que com a Luísa. Os prefeitos das cidades do Rio que sofreram com as chuvas trabalharam muito durante o caos, mas provavelmente, passado o dilúvio e seus aluviões, voltaram a seus gabinetes para sonhar, erotizados pelo poder, mais com Luísa do que com Diego. Acabarão por esquecer de buscar uma saída para tornar a cidade menos vulnerável aos golpes da natureza e à exclusão social.