30.3.20

O clown sem graça

Ó meu ódio, ódio majestoso,
Meu ódio santo e puro e benfazejo
(Cruz e Souza, Ódio Sagrado)



Numa visão superficial, parece que na esquerda sobram os quadradões e na direita deitam e rolam os “de boa”. O presidente, quer dizer, me desculpem pela violação de um cargo tão sagrado, me corrijo: o presindecente apregoa por aí que o vírus made in China é bichinho bobo e que temer um inimigo miúdo desses é pura histeria. Ele se parece com amigos inconsequentes que sempre tivemos. A esquerda, nessa metáfora, é o tiozão preocupado, o que acha que nove da noite é hora avançada para moços e moças estarem pelas ruas. No caso do enfrentamento ao vírus, é melhor se trancar em casa e esperar o pior passar. Nunca fomos tão tiozões e tiazonas. Viva a caretice, que enfim encontra serventia.

Noves fora o vírus e tudo que ele nos faz enfrentar — seu contágio, de um lado, nosso caráter, de outro —, o fato é que, diante desse desgoverno eleito, nossos dias são dedicados a assombros, sustos e depressões. Pelo menos os meus têm sido assim. Penso que, por sorte, tenho a literatura, essa ilusão que nos fortalece ao oferecer uma realidade paralela. Quem não usufrui da arte (como “produtor” ou “consumidor”) passa um perrengue maior. Leiam! Ouçam música! Visitem virtualmente os museus! Dancem sozinhos em seus quartos!

Não estou contra este governo agora que virou modinha ser contra — modinha é esta expressão. O atual ocupante da presidência entrou no meu raio de observação quando, em seu voto no impeachment da Dilma, fez loas a um desqualificado, a um torturador. Naquele instante, achei que o senhor deveria ter saído preso da sessão. Não saiu, o que prova que nosso acordo em torno da Anistia deixou um monte de cicatrizes e, peço desculpas pela próxima palavra, empoderou os que, a serviço do Estado, torturaram e mataram.

O sujeito em foco neste texto tem dado mostras claras de que não tem preparo nenhum, muito menos para governar. Alguns dizem que está de olho na reeleição, ouso discordar, os políticos estão sempre de olho na reeleição. Para mim, ele governa respondendo a interesses escusos, especula-se que das milícias. Soma-se a isso sua personagem popularesca. Apegado à imagem de machão e de homem do povo, ecoa impropérios, incentiva a violência, em particular contra as mulheres. A palavra incivilidade cai como uma luva sobre o desgovernante do país.

Sua atuação no dia das manifestações a seu favor deu mostras de seu descontrole. Suspeito de ser portador do vírus que, indiferente a países ricos ou pobres, tem aterrorizado o mundo, o paspalhão foi à rua cumprimentar e tirar selfies com os fãs. Merecia, novamente, sair dali preso. Passa-se mais uma vez o pano, dada a conjuntura, com álcool em gel ou com a mistura de um litro de água sanitária em três litros de água comum.

O que parecia irresponsabilidade suficiente não parou aí; no dia 22 de março, em rede nacional, o senhor jogou a ciência e toda a experiência no enfrentamento da nova doença dos países estrangeiros no lixo. Um arroubo menos que juvenil decidido na antessala da presidência, no que é chamado de escritório do ódio.

No dia 18 de março, quando sairíamos às ruas pela educação (uma das áreas mais afetadas pela política ideológica que se diz sem ideologia), os protestos, em período de recolhimento, migraram para as janelas e varandas. O panelaço — símbolo da luta contra o governo Dilma — foi resgatado por quem não admite tamanhos descalabros. Claro que, agora, àqueles que nunca se convenceram de que o atual governo poderia ser bom juntaram-se os arrependidos. O devaneio do clown (sem graça) — ou o anticlown, como sugere minha irmã Teresa Cristina, revisora de meus textos — pelas ruas, quando poderia estar contaminado pelo vírus, foi um facho de luz sobre quem acreditou que, pior do que estava (no tempo do PT), não ficaria. Ficou, ficou muito.

Charge de Nando Motta, publicada no Barsil 247

16.3.20

Em torno do umbigo

Gostaria de começar esta crônica-espelho com a palavra convulsão, pois me vi num estado convulsivo nos dias próximos ao lançamento no Rio de Janeiro de “Nenhuma poesia: uma antologia” (Editora Patuá), um conjunto de poemas escritos ao longo de quarenta anos. Como quarenta são os anos vividos no Rio, é um livro comemorativo. Sim, uma comemoração minha comigo mesmo. Meu nome é Narciso Alexandre Pessôa Brandão. Ou foi por uns dias. Agora já voltei à realidade estúpida reproduzida pelos espelhos, vitrines, capôs de carros e latas abandonadas nas ruas.

Nos meus dias de beleza revelada pela água, vivi as bobagens mais bobas que a ansiedade nos faz viver. Me vi um adolescente que não sabe muito bem como lidar com os compromissos que, da noite para o dia, mudam de tom. Símbolo dessa mudança era deixar de usar calças curtas. Pois então, nos dias em torno do dia do lançamento, minhas calças compridas estavam sendo confeccionadas pelo alfaiate da delicadeza, da amizade. Eu não sabia e pensava que elas iriam me apertar e me reter no chão. Insônia, dúvidas em cascatas, essas são as companhias da ansiedade adolescente.

Mas também há um nível da ansiedade menos estúpido, aquele no qual um cara com sete livros soltos pelo mundo se vê metido. Será que não fui longe demais, por que não ficar escrevendo meus contos e crônicas, deixando isso de poesia pra lá? Mas por que não, se há material para um livro? Essa briguinha tem, de um lado, a vontade de se dar ao mundo como mais uma voz que lhe quer falar e, de outro, a vaidade, a proteção um tanto quanto covarde do próprio nome.

Publicar o livro foi a vitória de quem quer dialogar. Como digo sempre, escrevo com esse fim. Claro que, ao escrever, busco a forma que me agrade, ou seja, não faço pouco caso das questões estéticas, mas o meu interesse é falar com o hoje.

Amigos que escrevem entendem esse estado convulsivo, um pouco letárgico e muito viçoso. Para quem não escreve, pode soar incompreensível, mas, por favor, faça um esforço, não saia por aí dizendo que o Xandão é cheio de nove horas. Não sou, só tenho um umbigo que, numa hora dessas, fica maior que o mundo.

Chegado o dia do lançamento, raspei o prato do afeto. No quintal da casa que minha filha e outras psicólogas alugam (mulheres, obrigado pelo espaço tão acolhedor), recebi pessoas de vários mundos: da faculdade, do trabalho, da família, do círculo de amigos, da literatura. E foi um encontro, além de lindo, potente. Todos nós sorríamos. Poderia ser simplesmente uma festinha, mas não, ali firmávamos o compromisso calado de manter o sorriso no rosto para enfrentar a monstruosidade que governa nosso país, eco desafinado de uma monstruosidade que se impõe ao mundo.

Na viagem ao umbigo, encontrei forças para sair dele e exigir que a gente lute para retornarmos à convivência social respeitosa — ainda que contraditória, com forças conflituosas puxando a corda cada uma para o seu lado —, que, com a intermediação do Estado, deve buscar o bem comum. 

1.3.20

Conjecturas


Claro, não existem bruxas, existem mulheres que passam o pano no terror comandado por esses nostálgicos da Idade Média.

Claro, não existem mulas sem cabeça, existem homens que se sentem abraçados pelos novos bafos do ultrapassado.

Claro, não existem fantasmas, existem crianças que não querem brincar de bangue-bangue, mas, sim, de atirar e matar.

Claro, claro, claro, Juscelino, retórico, publicitário, político, jamais pensou ser possível dar mil passos para trás avançando o tempo em um ano.

Mayo, Coups de Bâtons 1937.


Exagero, a besta se construiu ou foi parida aos poucos e ao longo do tempo.

Exagero, a besta não é um acidente, um fato raro, um absurdo, um ator que enganou a todos. A besta sempre esteve aí, no peito, na essência.

A besta dormiu em mim?

Sim.

Em você?

Sim.

Por que você canta e enaltece a besta enquanto eu não?

Porque eu, você diz, fui ignorado pelos não ignorantes. Os dedos me apontaram como o ontem. Mas eu estou aqui com Deus — um que não compreende; com a família — uma que não existe, de tão limpa, suja; com a propriedade — conquistada de berço ou de suor, sim, de suor de pronto esquecido. Quem fui, não sou mais. Como com garfo, atiro com bala; as mãos são sujas, as flechas, imprecisas. Os leões matam. Mato igualmente. Os leões rugem. Eu afirmo com todas as letras: mato porque matar a meu modo, saciado, é a atitude dos que não rugem.

Claro, não existe o inferno, a escuridão é um descuido do sol.

Claro, não existe a dor, o fracasso é uma fruta podre.

Claro, não existe a fome, o paraíso é a etapa superior do sacrifício.

Claro, claro, claro, o sonho civilizatório foi pisoteado pela insônia.

Exagero, ninguém está acordado. Anestesiado é como estamos.

Exagero, brinca-se de pique onde não há esconderijo — na luz do deserto.

Você tem comido o riso e arrotado a loucura enquanto eu queimo os versos que não são mais que cinzas.