22.8.16

As migalhas e as dúvidas


Depois dos jogos, a orla Conde será tomada pelos cracudos? Pelos tarados? Pelos fantasmas dos inocentes (negros jovens na maioria) que têm morrido na guerra promovida pelo Estado contra o tráfico?

Não sei.

A cidade olímpica irá se transformar num grande parque para urubus, macacos, capivaras e outros animais famintos desalojados da floresta e dos mangues? Ficará ao relento, depreciando-se a olhos nus e incapazes de tomar qualquer providência contra isso?

Não sei.


A grana embolsada por esse e aquele sangrará os estoques de remédios dos ambulatórios? Sujará mais ainda a baía que deveria ter despoluído?

Não sei.

Não sei se não sei, mas gostaria muito de não saber. Saber, nesse caso, é pior do que não saber.

Na confusão na qual estou metido ecoa a frase do Luiz Antonio Simas (historiador carioca) que minha amiga Shirley Vilela compartilhou no Facebook. Ele diz: “Meus avós tiveram a sabedoria de me ensinar o seguinte: a gente não faz festa porque a vida é fácil. A gente faz festa exatamente pela razão contrária. A cultura do samba veio desse aparente paradoxo. Não se samba porque a vida é mole. Se samba porque a vida é dura.”

Orla Conde, Rio de Janeiro. Foto do site de O Globo.

A caminho de um lançamento de livro na Prainha, cruzei, na orla Conde, com a bateria de uma escola de samba. Atrás e ao lado dela, as pessoas, mais brasileiros que gringos, dançavam. Dançavam porque a vida é dura. Dura porque muitos perdem seus empregos; porque a lista de futuros prefeitos é pouco animadora; porque as cicatrizes da esgrima política — os que trocaram suas convicções pela política suja contra os que sempre praticaram a política suja e, por um tempo, aliaram-se aos ex-convictos para lhes dar, em seguida, uma rasteira — ainda vão doer por muito tempo; porque, silenciada a festa, os tiros que continuam ceifando vidas no Alemão, na Maré, nesse céu de favela que temos por aí vão zoar fortes como nunca.

Vou de frase feita: não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Desacorçoado, me abraço ao pessimismo e concluo cheio de clichês: a rapadura, apesar de doce, é dura. Eu não sei sambar.

8.8.16

A dor de entremeio

Para Alexandre e Antonio

Penso em dois amigos, poetas e conterrâneos, a quem devo a chance de ter passado por experiências poéticas não muito usuais. Um deles, num dia, e, muitos anos depois, o outro, ao lerem um de seus poemas em uma pequena roda na qual conversávamos, deram uma travada, tropeçaram na leitura e sucumbiram à lágrima. Qualquer leitor percebe que, na criação daqueles versos, ambos foram aonde poucos vão — ao inferno, ao céu, sei lá em que extremo está localizado o sítio pelo qual transitam os verdadeiros poetas. Vi quando ambos reviveram o gesto inaugural de seus poemas, momento inevitavelmente de caos, de aparição sem disfarce das muitas camadas da emoção, empilhadas sem ordem sobre um móvel esquecido entre o cérebro e o coração.

 Alexandre Antonio explorando outra poética.


O que o poeta faz ninguém faz. Possuído pela dor — para ser coerente com as leituras que ecoam nesta crônica, tenho de falar em dor —, ele a espalha no papel, depois, com algum distanciamento — quando fica a serviço da razão —, ordena tudo em versos, que deixam de ser dor somente e se transformam em beleza doída, em arte. O leitor tem contato com a dor transformada e reconhece a dor bruta sem nunca alcançar sua intensidade. O poeta, ao voltar algum tempo depois ao poema, revê na beleza com que ornou sua dor a dor autêntica — e seu corpo acusa o golpe.

O que há de extraordinário nisso? O poeta mergulha no que lhe é mais íntimo e exterioriza sua intimidade para torná-la atraente a quem nada tem a ver com ela. Ele doura a pílula, trapaceia, mas, no fundo, no fundo, não ordena o caos. (E ele, mais que ninguém ou mais ninguém, sabe disso.) Se, ao escrever, o poeta corta, longe da vista de todos, os pulsos, ao ler, repete o gesto, a vista de poucos, e sangra de novo.

Escrevo com ostentação, certo de que estive entre uns poucos escolhidos, num instante com vocação de raro. Em público, o poeta evita a leitura autofágica, reservando aos mais chegados, em um sarau improvisado, o próprio desamparo. É um momento mais de confissão que de outra coisa — nele, a tal vaidade do artista não entra, talvez fique fumando lá fora, no sereno frio.