30.7.23

O líder

O assunto é futebol.

Até a rodada da semana passada, o Botafogo liderava o campeonato nacional masculino com onze pontos na dianteira do segundo colocado, isso depois de dezesseis rodadas (de um total de trinta e oito). A campanha não tem paralelo na era de pontos corridos: treze vitórias, dois empates e uma derrota. A coisa pode mudar? Sim, mas os fatos são esses.

Não é tanto o futebol o assunto de que trato agora.

Ao Botafogo está grudada a pecha do sofrimento. Feita uma menção ao clube, logo levantam a voz para falar do chororô, remetendo a um jogo contra o Flamengo em que a torcida alvinegra imputou o resultado (a vitória rubro-negra) à mão grande do juiz. Mas não só. Se entre os anos de 1950 e 1960, o Botafogo era, ao lado do Santos, a grande potência do esporte, a partir daí despencou. Ficou sem ganhar um campeonato carioca por vinte anos; depois de 1968, só em 1989. E faturou apenas um nacional, em 1995, ainda na época do mata-mata, quando derrubou o grande rival dos áureos tempos. Não bastasse isso, desceu três vezes à segunda divisão, tendo voltado à elite sempre um ano depois, como vice-campeão em 2003 e como campeão em 2015 e 2021.

Esse cenário de um deus chafurdando entre os mortais explica a tal sofrência do “Glorioso”, que “não pode perder / perder pra ninguém”. (Nos dias de hoje, o hino seria feito não por Lamartine Babo, mas por um desses sertanejos universitários. Pelo menos isso não aconteceu, há de se comemorar.) Mas é preciso ver a trajetória do alvinegro carioca com olhos voltados para além das quatro linhas (as quatro linhas aqui são o que são, ou seja, não têm nada a ver com aquela metáfora surrada da extrema direita). O Botafogo, sofrido, se confunde com o Brasil. E essa identificação é tão clara que não há quem o odeie. Numa espécie de autoironia, brinca-se com a sua situação, faz-se bullying com seus torcedores, mas a verdade é a seguinte: se o clube sai da zona do sofrimento, todo brasileiro sai um pouco também, logo, o sucesso da Estrela Solitária é a chance de redenção do país.

Não é à toa que, quando o Brasil tira um dedo da lama – sabemos que a lama ainda nos segura e continua alimentada por água e terra que não acabam mais –, o time do chororô assuma a liderança do campeonato. O paralelo vai além: o sucesso do Botafogo passa por uma aliança estranha: o dinheiro de um gringo (o Botafogo foi um dos primeiros clubes a se transformarem em sociedade anônima do futebol, SAF) e os pés de um monte de jogadores – os que têm feito a diferença no ataque, paraibanos – que rodavam pelo mundo em clubes médios ou pequenos. É a tal coalizão. 

Talvez a taxa de juros caia e o emprego aumente, talvez nossas dívidas sejam renegociadas e a economia aqueça, talvez o negacionismo regrida e a ciência triunfe, talvez a Amazônia, o cerrado e a mata atlântica passem a ser respeitados e preservados. Se nada ainda é líquido e certo, o clima menos sombrio acende a esperança de dias melhores. Sendo assim, é justo que o campeão seja aquele que sofre em nome de todos. Somos todos Fooooogo.




15.7.23

CM e a rapadura

Carlos Magno, na certidão de nascimento e na esperança familiar de se tornar um grande homem; Classe Medião, como, depois de homem feito e cheio de história, o descreveria aos pais um novo amigo do filho, encantado com tantos brinquedos e aparelhos eletrônicos existentes na casa dos vizinhos recém-instalados no prédio; mas foi como CM que ficou conhecido. O senhor CM. O parça CM. Papi CM. CM, meu amor.

Na infância, carregou caixa de engraxate, negociou passarinho, fez uns pequenos furtos. Depois foi trabalhar na loja de esporte do seu Kalu, de lá arrumou um emprego num banco privado e, por milagre – opinião de sua mãe, baseada no fato de nunca ter visto o Carlinhos (pra mamãe não tinha essa de CM) com um caderno na mão –, passou num concurso do Banco do Brasil. Foi mandado para uma cidade distante. Não sendo conhecido de ninguém, fez do emprego um cabide para favores de toda sorte. Favores, diga-se de passagem, que custavam aos beneficiários uns bons bagarotes.

Quando visitava a mãe, levava-lhe presentes. Filho atencioso, está muito bem no serviço público, comentava envaidecida a senhora. De fato, estava, só que o recheio de sua conta tinha pouco a ver com o salário mensal. Bastava compará-lo a um colega mais ou menos contemporâneo para constatar isso. O outro estaria bem, mas ali no limite, e bastava um sopro nos ares da conjuntura para consumir sua poupança, fazê-lo tirar o filho da escola particular ou voltar a tomar a cerveja barata ou mesmo deixar de tomá-la. Já CM nem se preocupava com cenários econômicos, micro ou macro.

Assediou a moça bonita, filha de uma autoridade importante do município, e foi correspondido. Casamento, filho, construção de uma casa confortável. Um monte de amigos. Depois a transferência para a cidade grande. Quando se instalou no prédio de bairro nobre, aconteceu o caso que lhe custou a alcunha de Classe Medião. Ele achou foi graça, era isso mesmo, mas que não o chamassem assim, pois era CM. Para o filho. Para a mulher. Para a mãe; não, pra ela, não. Para os clientes vips. Nas reuniões de condomínio, à boca pequena, o chamavam do apelido que lhe desagradava, mais por pilhéria que por maldade.

Ah, a vida na capital. No início, o deslumbre. Almoços caros, bares da moda, uma amizade colorida. No entanto os arranjos do banco tornaram-se mais difíceis; difíceis, não, impossíveis. Lá no interior, os favores lhe eram pedidos e já chegavam com o orçamento definido. Era pegar ou largar. Ele sempre pegou, porque ser trouxa não era de seu feitio. Mas na capital... Deveria se oferecer? Desenrolo aquele pedido de empréstimo em troca de um pequeno agrado. Faço sua assinatura subir para o gerente agora. Sumo com essa ficha meio suja. Cidade grande, gente miúda. Vai que todo mundo ali fosse honestíssimo? Ou que o jogo fosse maior? Que ajuda em empréstimo coisa nenhuma, a questão era ocultar umas exportações, usufruir de um câmbio especial, dar um calote sem pena nas contas do governo.

CM foi vendo o dinheiro minguar e a timidez crescer. Não era desses, o que se passava? Veio então o vento outonal de uma crise econômica, e o sortudo bambeou as pernas. Prudente, dispensou a amiga. Mais adiante, a empregada. Tirou o filho da escola privada, notícia recebida com ironia no condomínio: “Agora é o Classe Medinha”. Não ficou muito mais tempo no apartamento caro e bonito, deixando para trás aluguéis, taxas e impostos atrasados. Foi morar longe e começou a economizar nas refeições, a descolar umas caronas para não enfiar o salário todo no transporte urbano. A mulher se mandou para a casa dos pais, lá na cidade do interior, e logo entrou na justiça cobrando-lhe uma pensão pra lá de escorchante.

Conheceu a solidão da pessoa sem dinheiro. Maldisse seu infortúnio e deu de beber. Um dia, embalado pela cachaça (das baratas, nada de luxo), pegou um papel e escreveu: “Sou o lateral esquerdo – ou talvez o beque central – ou talvez o quarto zagueiro – ou talvez o lateral direito – ou todos eles, incluindo o cabeça de área – de minha defesa devassada”.

Seria poeta, decidiu com a certeza do borracho. Escreveria umas coisas aqui, outras ali e, para não perder o hábito, roubaria uns versinhos. Ninguém notaria, afinal quem lê poesia nesse mundo? Se viu recitando seus versinhos nos programas vespertinos de televisão. A fama logo se traduziria em grana. Estava quase feliz com seus devaneios quando o pileque passou, deixando, ainda, a maldita ressaca no descontrole de tudo. Nessa hora, ouviu a mãe dizendo aos vizinhos: “o Carlinhos, coitado, entregou a rapadura”.



3.7.23

A mesa vizinha

Passáramos (o escritor moderno talvez prefira escrever “havíamos passado”, mas há pássaros em passáramos, e eles acabam de pousar bem aqui) o dia indo e vindo entre o velho e o novo apartamento de meu filho e minha nora. Levávamos a parte miúda da mudança: roupa, talher, louça, material de limpeza, livros, mas também duas televisões grandes e até o tampo da mesa de jantar, de vidro, frágil. Terminada a tarefa, fomos deixar o carro na locadora e encontrar um bar para molhar as palavras, estancar o suor, jogar conversa fora, enfim, essas coisas nomeadas de um jeito a não escancarar o fato de que fomos beber. Comemorávamos a casa nova, o sucesso do nosso trabalho, o fato de termos passado o dia juntos.

No bar, sentamo-nos ao lado de uma mesa ocupada por quatro mulheres. Duas mais velhas, uma intermediária e uma menina de uns dez anos, no máximo doze. Conjecturei que era uma família e apostei que a criança estava acompanhada da bisavó, da avó e da mãe. Depois eu soube que não, eram as suas duas avós, a materna e a paterna, e sua mãe. Como eu disse, quando chegamos, elas já estavam lá e, digo agora, de lá saíram no mesmo momento que a gente. Venci a timidez quando esperávamos a condução. Aproximei-me da mãe da menina e perguntei sobre o parentesco (pelo menos essa curiosidade eu não carreguei).

Ainda no bar, elas fecharam e reabriram a conta algumas vezes, quase sempre pediam mais três chopes, embora uma das senhoras tenha passado a tomar refrigerante a partir de determinada hora. Ou tenha tomado um refrigerante e, em seguida, voltado ao chope.

A menina, que estava de costas para mim, foi quem prendeu minha atenção. Enquanto as mais velhas tagarelavam, como é o esperado em mesa de bar, ela jogava no celular, o que passou a ser habitual nos dias de hoje. Ao olhá-la batucando a tela, notei suas unhas, eram enormes e carregadas de esmalte carmim. Mais tarde, quando ela se levantou e pude vê-la de frente, percebi que estava maquiada de um jeito que nem mesmo em moças mais velhas, adolescentes e jovens tenho visto.

A menina, ao estar caracterizada como adulta, parecia presa ao passado e, agarrada ao eletrônico, ao futuro – que já é presente, mas, em perspectiva, está bem aquém do que será em breve. As outras mulheres também davam sinais ambíguos. Falavam o que eu não conseguia captar – e nem queria, afinal, estava com os meus celebrando um dia produtivo –, mas houve uma hora em que a mãe da menina, filha de uma senhora, nora da outra, usou uma expressão bem masculina para falar de uma atitude tomada certa vez: “meti o dito-cujo (não foi bem essa palavra, mas uso-a para não ferir o pássaro que voou sem sentido algum no início da crônica) na mesa”. Não é raro eu ouvir mulheres usando expressões assim. Tudo, inclusive a linguagem, anda mais complexo do que imagino.

Saio pouco de casa, talvez por isso tenha me encantado, melhor dizer – sem querer me proteger de um possível julgamento –, me assustado com aquela mesa. Não deve ser nada diferente nos muitos botequins da cidade, é que perdi a cancha, a malícia, enferrujei. Em devaneio, até escuto o pensamento irônico borbulhando na cabeça daquelas mulheres: “Por aí, seu cronista, tu não vai chegar a lugar nenhum, não envelheça tão casmurro”. Casmurro? Eu? Então me respondam: em que alcova andará escondida minha Capitu?