17.9.15

Quatro

Silêncio

É de dentro do silêncio — caverna sem sombra, colo extemporâneo para um homão feito eu — que escrevo agora e de onde imagino não sair tão cedo. Silêncio, com medo de se quebrar, não dá margem nem a pensamento, pequeno que seja.


O canto das cigarras faz parte do silêncio. E, no extremo silêncio, ouve-se o formigar das trabalhadeiras. Logo, concluo, o silêncio silencioso é uma invenção, mas o meu, agora, este —  ah, este silêncio! — fechou as portas para o mundo, e o mundo foi fazer barulho lá longe, na p que o pariu ruidoso. 


Preto e branco

Leio o livro duplo de Nilma Lacerda. De um lado “Viver é feito à mão”, de outro, “Viver é risco em vermelho” (bela edição da Editora Positivo). Duas histórias muito parecidas e, assim mesmo, inconfundíveis. Parecidas porque as duas personagens se envolvem com a escrita, porto ao qual chegam como forma de lidar com suas dores. Distintas porque a menina da primeira história é de classe média, branca provavelmente. A da segunda, negra, vive sem pai nem mãe na favela da Maré. Os problemas da primeira estão associados à família e a toda aquela engrenagem que roda a partir da intriga de um contra o outro, do amor de um pelo outro. Os da segunda advêm da penúria — ponto além da pobreza. O arranjo gráfico do livro é tal que “Viver é feito à mão” se lê da forma habitual: à esquerda, as páginas lidas; à direita, as que devem ser lidas. Já em “Viver é risco em vermelho” ocorre o contrário, à esquerda ficam as páginas ainda não lidas. Simplificando: o primeiro se lê de frente para trás e o segundo de trás para a frente (do objeto livro, não da história). As duas narrativas confluem para as páginas centrais, nas quais o livro acaba, mas — uma vez que aquelas personagens ganham, a partir de contornos tão claros, existência —, as histórias não. Maurício Negro, responsável pelas ilustrações, talvez para evitar a dicotomia cromática sugerida pela pele das meninas — ponto importante no que se conta —, opta pelo vermelho como a cor dominante. Um acerto e tanto, pois o livro é, para resumi-lo em uma só palavra, ardente.
Música




Para me acompanhar vida afora, se tivesse de escolher uma música, uma única, eu estava frito — à milanesa. Uma só? Isso não existe. Por natureza, gosto das que chamam ao repouso ou à reflexão e, se a hipotética escolhida convidasse à dança, seria um acaso, uma interferência no destino da música que não foi feita para dançar.

Dito isso, elejo “Clube da esquina”, parceria do Milton com os irmãos Márcio e Lô Borges, como a música que tenho levado pela vida. Ouvi-la me remete ao período no qual fui deixando de ser menino para me tornar esse homão capenga que sou. Sua letra é noturna e esperançosa, duas grandezas que não se somam, dois touros bravos mantidos apartados em seus domínios. 
A lua


Foto do autor. Lua na Praia Vermelha, Urca, RJ.
Eu e Bia fomos ver a lua na Praia Vermelha. Lá encontramos o poeta e sua Cristina. Ficamos os quatro conversando amenidades, vendo e fotografando a lua — aqui e ali nos espantávamos mais uma vez com a sua beleza e então, como se quiséssemos não cair no golpe de seu encanto, voltávamos à conversa miúda, a um comentário sobre o frio ou a vida de nossos filhos. Se havia poesia ali, éramos nós essa poesia — não estávamos na condição de escritores, mas de escriaturas.

Não sei se, de volta a casa, o poeta escreveu para aquela lua. Eu não, a lua não é para o meu bico de escritor, além do mais, já existe o “Moon do cão”, poema de meu amigo Antonio Barreto (no livro Vastafala), vindo ao mundo sabe-se lá sob qual feitiço. Fiquem com ele, enquanto eu caço por aí alguma musa menos luminosa.


                Lua, deixa de ser assim tão branca
                  e egoísta!


           Que vida besta esta tua:
           aí parada entre tantas coisas
                  inúteis

           satélites, estrelas, naves noturnas:
                  tanajuras de verão!

           Lua capitalista! Uivo branco de Deus!

                 Urubu do Além!

           Desça daí... Vem morar comigo, vem,
           que te dou um Sonrisal e um Cadillac
           em troca de um soneto de Olavo Bilac!


7.9.15

No lombo do Brasil


Acomodo-me no vagão nem luxuoso nem simples do trem que me levará do interior de Minas a Florianópolis ou, via Pantanal, de Quixeramobim ao último povoado ocidental do extremo sul. Mas não existe essa possibilidade. Poderia existir, não fosse a falsa modernidade à qual nos agarramos ao longo do século XX e que sepultou os trens, sem que ninguém soubesse ou saiba quem garfou os trilhos.
Estou bem instalado no trem inexistente, e de sua janela num instante passo a contemplar o sertão árido, o resto de mata atlântica, o cerrado. (O Pantanal, preso num poema de Manoel de Barros, não pode ser mais visto, apenas lido, mas lemos pouco.) E sobe montanha e desce montanha. E margeia rio e se afasta de rio. Café com pão, café com pão. Bandeira, sedento de Brasil, invade o vagão e me sequestra.
No Brasil ninguém diz “eu digo”, ninguém diz “eu roubo”. (Tampouco eu.) Aqui, a esquerda benze meia dúzia de empresários: mais-valia pura pra quê se cinco letras em forma de banco abastecem os ungidos com dinheiro barato e pedalado? Aqui, a direita tem nostalgia da palmatória, mas investe mesmo é em arma pesada e sonha com um sistema prisional lucrativo: menino preso é capital sadio e, por isso, bom reprodutor.
O trem parece andar fora dos trilhos. Virge Maria, que foi isso, maquinista? Nada de susto, ele avisa pelo sistema de alto-falante, estamos apenas passando por cima de um rol de Adílios. No trem da Central, continua em tom muito formal, a operação de passar sobre o corpo de Adílio Cabral dos Santos ocorreu por necessidade: Quem seria o doido de tumultuar a vida daquele que precisa chegar ao trabalho na hora? Apesar do improviso, a profanação foi um ato de humanismo, ápice da consciência coletiva. Agora — a voz soa bonita e cheia de si —, produzimos Adílios em prostibolatórios de última geração e os jogamos já mortos sobre os dormentes. O trem que conseguir esbarrar no menor número deles ganha um prêmio. Qual? Dizer que foi ideia do outro. No Brasil gostamos de apontar o dedo e dizer “foi ele”, “foi ela”. Precavidos, não afirmamos coisa alguma defronte do espelho. Quanta sabedoria a desse homem!
O trem-bala já contornou o Chuí e, não tarda muito, desceremos em Manaus para, de acordo com o cardápio, comer carne de índio tucunaré. Sou repreendido pelo vizinho de assento: Não seja inocente, o índio é haitiano ou guianense, ninguém sabe ao certo. E não vem ao caso. Nunca vem ao caso, e ninguém jamais sabe ao certo. O tempero vai ser nativo, corre de boca em boca, para dar sabor à nossa eterna vingança pelo que fizeram ao bispo Sardinha.
Há pela frente o Pico da Neblina. O trem não está preparado para tamanha escalada, mas uma voz prática convoca homens de fome eterna para empurrá-lo até o cume. Lembro-me de Fitzcarraldo, o lunático filmado por Herzog, cineasta idealista que fez subir um navio pela montanha, uma linda imagem à custa da vida de outros famintos nativos dessas mesmas bandas amazônicas. Agora, são índios e negros — outra vez escravos, se é que algum dia deixaram de sê-lo — os que, tropeçando em Adílios, cumprem a missão. Ninguém poderia imaginar que ainda houvesse relho, chibata e cipó de aroeira, mas eles estão lá, troando no lombo de quem nunca mandou dar — tamanha violência cujo efeito colateral inesperado é deixar cada um de nós nu e, com isso, nu e transparente o próprio Brasil. Um rápido olhar para os lados é suficiente para se perguntar: onde foi parar a África nos machos, a Europa nas fêmeas? Quem lavou nossa miscigenação com água oxigenada e óleo de peroba?
Para cruzar o pico e depois descer, o governo empenhou no orçamento do ano que não vem dinheiro insuficiente e desnecessário, diz uma voz que não é a do maquinista, sabe-se lá se de um Adílio, de um Herzog, de um Deus dessas tantas butiques da fé espalhadas pelo Brasil. Outra frase brota no ar: No alto do morro, passa boi, passa boiada, só não passa solução já pronta para tormenta encomendada. Quem diz é ele, o do lado ou aquele mais adiante, mas, segundo ele, fui eu quem disse.
Em terras tropicais, odiamos o outro.