19.3.18

Quatro crônicas musicais (originalmente publicadas na revista InComunidade, de Portugal)


O que restou daquela compra antiga

Em 1990, logo depois do nascimento de meu filho mais velho, o João, Ollie Johnson trouxe dos Estados Unidos meu primeiro aparelho de reprodução de CD. Um dia antes da chegada de meu amigo americano, ao passar por uma loja em Copacabana, uma pequena, sem fama alguma, comprei dois “disquinhos” para estrear o som.

Um deles foi “Ballads”[1], do John Coltrane, gravado em 1962, ano em que eu, lá no interior de Minas Gerais, aprendia a dar os primeiros passos. Não foi logo nas primeiras audições, mas muito depois, recentemente até, que, ao ouvir a interpretação vertiginosa e sensual do saxofonista, me dei conta de que ele me soprava uma história. No dia dessa descoberta, com Coltrane no fone de ouvido, eu corria pelo Aterro e, ao voltar a minha casa, fiz o primeiro esboço de “A trilha sonora de Bebel”, conto do meu livro “Qual é, solidão?” (Editora Oito e Meio, 2014). No enredo, Bebel fantasia que é amante de Coltrane e o vê, de longe, sentado à sala, injetar-se uma dose de heroína para, em seguida, tocar “Say it (over and over again)”.

O outro foi “Olívia Byington e João Carlos Assis Brasil”[2], disco no qual o piano dele e a voz dela passam, entre compositores estrangeiros, por Gershwin, Cole Porter, Debussy, Piaf e Kurt Weill e, entre nacionais, por Villa-Lobos e Dora Vasconcelos, Tom Jobim (com Chico, com Vinícius), Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, Vítor Assis Brasil, Cartola, Catulo da Paixão Cearense e Assis Valente. É um repertório e tanto, particularmente para um sujeito que, tropeçando na paternidade incipiente (e também insipiente), experimentava uma solidão diferente de tantas anteriores. Quem se torna pai talvez entenda o que estou tentando dizer e reconheça o lugar no qual eu entrava.

Esses dois discos rodaram no aparelho portátil até cansarem. E cansaram, ô, se cansaram, os CD eram caros, e a disputa com os mimos e necessidades do bebê colocavam a música em desvantagem. Eu ainda tinha vinis e os escutava bastante, mas o charme da nova tecnologia roubava-me para, hoje, Coltrane, amanhã, Assis Brasil e Byigton, depois de amanhã, novamente estes e, logo depois, aquele. A repetição dava-me segurança naquele momento em que meu mundo caía e minhas preocupações enfim voltavam-se para o futuro.

Paro, respiro e tento, contra a lógica que nos empurra a favor do tempo, voltar àqueles dias, não em busca da minha juventude, que já não era grande coisa, nem de outra materialidade. Gostaria apenas de encontrar-me com quem eu havia sido e que, embarcado na “Caravela”[3], de Gismonti e Carneiro, ia se dando conta de que não seria nenhum Cabral a desbravar mares à procura de novas terras, nem Ulisses pronto a enfrentar monstros e deuses para, vitorioso, voltar à espera de Penélope. Nada disso. Naqueles dias, o pai de primeira viagem descobria o “exílio no coração”. Às vezes, bem, obrigado, noutras, nem tanto, continuo habitando esse exílio, ainda que eu já não seja mais o mesmo.



O violão da mamãe

Minha mãe contava que nosso violão de muito tempo fora não uma compra, mas uma conquista. Quando meu avô estava na loja, a ponto de fechar o negócio, ninguém mais, ninguém menos que Silvio Caldas entrou, pediu para experimentar o instrumento, mostrou-se bastante interessado nele e disposto a recompensar financeiramente o seu quase dono. Meu avô aproveitou-se do inesperado atestado de qualidade dado à mercadoria, desculpou-se com Silvio Caldas e caiu fora feliz com a aquisição.

Não sei se por piedade ou por gosto, Silvio Caldas — o Caboclinho Querido — era o cantor preferido de minha mãe. Na verdade, o sucesso dele, num mundo em que havia um Orlando Silva e um Francisco Alves, não estava baseado apenas no fato de cantar músicas românticas. O cara era bom. Não por acaso, como afirma Cravo Albin, Custódio Mesquita e Ary Barroso faziam questão de que seus lançamentos ganhassem a voz do sujeito que vovô venceu numa contenda comercial.

Além do mais, o que seria suficiente para torná-lo um dos grandes, Silvio Caldas é coautor de “Chão de estrelas”[4], música que, na avaliação de Manuel Bandeira, teria o verso mais bonito da música brasileira: “tu pisavas nos astros, distraída”.

Com todo respeito ao grande músico, tomo uma expressão atual e informal e digo: perdeu, Silvio Caldas! O violão foi parar no Leme, à beira-mar, e, depois, mudou-se para o interior de Minas Gerais, onde foi intensa a vida social ao seu redor, com destaque para a época dos amigos de meus irmãos. A turma era formada por adolescentes que cantavam, a pleno pulmão, aquelas músicas italianas chorosas dos anos de 1960, mas também, na linha de João Gilberto — de forma contida —, a bossa-nova de Tom e os compositores que mudariam de vez a música brasileira: Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Jorge Bem e mais alguns. A segunda maior glória (houve o Silvio Caldas, não se pode nem se consegue esquecer isso) daquele violão foi ter sido tocado pelo Eustáquio Grilo. Não me lembro em que ano estávamos, mas Eustáquio já era um grande músico, embora ainda não fosse, creio, catedrático e estivesse longe de ser reconhecido a tal ponto de ter um concurso de violão com seu nome. Bem, pouco importa, o fato é que eu, um moleque, sentei-me no chão da sala da casa de meus pais e ouvi o Grilo fazer soar lindamente — e apesar das cordas velhas — o instrumento que não passava de mero coadjuvante da rapaziada que queria mesmo soltar a voz.

Um dia o violão saiu de casa para fazer uma serenata. Todos sabem, violão não anda sozinho, logo alguém o levou na base do empréstimo, mas quem? Não esteve na casa de fulano, não passou pelas mãos de sicrano, enfim, como certa vez veio a cantar Paulinho da Viola, o violão (mítico) foi pro fundo do baú. De qual baú é que o busílis. Não escrevo uma crônica policial, portanto, fiquemos apenas com o fato de que um dia o seis cordas tão disputado sumiu na noite de Minas. Tampouco escrevo uma crônica de futrica ou de especulação, o que não me impede de ver, sentado num camarim, à espera do show que está por começar, o velho Silvio Caldas receber a notícia do destino do instrumento que certo dia um gerentezinho de banco recusou-se a ceder-lhe. Ele ergue os olhos, pega o violão — detalhe: o acaricia —, e então entoa uma de suas composições, “Voltaste”[5] , sucesso esquecido dos anos de 1950. O cantor que valoriza as palavras, como era chamado, faz valer este apelido, particularmente quando chega aos versos: “Voltaste, / teu passado pouco importa / vens bater a minha porta / que a ti nunca se fechou. Voltaste, / vens viver vida decente / vais mostrar a toda gente / nossa briga terminou.”



Que música é essa?

A primeira vez que ouvi Itamar Assumpção, eu estava chapado, bem chapado por sinal. Da segunda, não, mas, ao ouvir sua música, ao olhar para o palco e deparar-me com um negro esquálido, potente, chapei de novo. Nada a ver com o Milton Nascimento. Nada a ver com o Cartola, com o Simonal. Itamar entrou na sala, não pela cozinha, com consentimento branco. Ele meteu os pés na porta da frente, sentou-se no meio de todos e apresentou-se como “Benedito, nego dito, cascavel”[6]. E ai de quem lhe tenha virado o rosto.

Eu dirigia o Corcel do Gora, havia saído da avenida Getúlio Vargas, entrado na Contorno e parado no sinal do cruzamento com a rua da Bahia. O rádio começou a tocar “Por enquanto (Mudaram as estações)”, música do Legião Urbana, banda que nunca foi das minhas preferidas. Contudo a voz da cantora era de outra natureza, cheguei a pensar que fosse a Nana Caymmi, mas logo vi que não, era só meu ouvido buscando alguma familiaridade com o que soava tão novo. No final, a rádio anunciou o nome da Cássia Eller[7]. A música fez sucesso, tocou a torto e a direito, acho mesmo que a cantora nunca conseguiu se livrar dela. A mim, foi isso: um dia sem importância, no qual eu dirigia pelas ruas de Belo Horizonte, tornou-se inesquecível.

Nina Simone. A história começa antes de ouvi-la. Na noite anterior, eu e um amigo havíamos entrado numa confusão terrível em Copacabana. Acabamos na delegacia. Meu amigo, militar, ficou indignado. No outro dia, ainda bêbados, fomos aonde ele trabalhava registrar uma reclamação, algo assim, e um colega de farda do meu amigo nos aconselhou severamente a cair fora dali, não seria bom sermos vistos por um superior naquele estado. Fomos então a Niterói, na casa de uma família mineira que vivia lá, casa com muitas moças. Chegamos, tomamos cerveja (como foi possível?) e, de repente, Nina Simone saiu pela caixa de som à beira da piscina, provavelmente cantando “Feeling good”[8]. Na hora providenciei uma fita cassete com a clara intenção de presentear minha mãe. Nina Simone me fez lembrar-me dela, embora não saiba explicar o porquê. Perdi a fita na balsa que me levou de volta ao Rio de Janeiro, senão antes.

O Alejandro foi lá para casa naquela vez que seu apartamento foi inundado por uma dessas chuvas tropicais, que caem na cidade eternamente despreparada para elas. Eu não o conhecia nem o vi chegar. Com ele estavam sua companheira e outro casal, todos moradores do apartamento submerso. Na outra manhã, vi-os espalhados pela sala, mas apenas quando voltei da escola fomos apresentados uns aos outros. O Alejandro então, bom relações públicas, puxou uma fita cassete e botou para tocar. Era o disco “80/81”, do Pat Metheny. Pode ser que o primeiro impacto tenha passado despercebido, mas, ao longo dos meses que se seguiram, eu e Gonzalo, o amigo com quem eu dividia o apartamento e que abrira a porta aos desabrigados, ficamos praticamente reféns do disco, em particular da primeira música, “Two folk songs”[9]. Havia no apartamento um pequeno quarto, nem meu nem do Gonzalo, onde ouvíamos música, recebíamos os amigos. Na janela do quarto, uma grade. Não falo em vão as palavras refém e grade. Eu e Gonzy, ao som do Pat Metheny, vivíamos numa espécie de prisão, até que, enfim, recebi o sorriso de uma moça, e o Gonzy de outra. Veio então uma nova fase, mas, nem assim, “Two folk songs” deixou de embalar aqueles dias de estudantes.



Outras lições

Não vamos à escola para aprender a beijar, mas, quase sempre, é na escola que aprendemos. Não na sala de aula, pelo menos não durante a aula, mas, na hora do recreio, na saída do colégio, nos momentos de descuido das autoridades ou do próprio juízo, o primeiro beijo estala —  de imediato, torna-se um vício.

A marchinha de carnaval induz as pessoas ao beijo, outra lição sem livro ou professor. Não sem motivo, Zé Keti e Pereira Matos escreveram “Máscara negra”[10] , que diz: “Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval.” Quem já esteve num salão sabe que, quando a música toca, os casais deixam a dança de lado e cuidam da boca, e não só dela, o beijo exige muito das mãos. O importante é que a pista de dança sacode menos e suspira mais com a bandinha mandando o recado aos namorados. Pais ciosos da própria imagem chutam a aparência para longe e agarram a esposa com furor meio esquecido. Mães que não acham nada bonito ficar trocando bicotas em público mandam o pudor para as cucuias e se entregam.

O samba, primo meio erudito da marchinha, enquanto passa na avenida ou toca no rádio, na vitrola ou nas nuvens, joga copos de cerveja nas mãos de quem está por perto. Em seguida, tira homens e mulheres da cadeira e, do mais talentoso ao totalmente sem ritmo, põe todos para dançar. Efeito colateral, o racismo encoberto do Brasil cai por terra e, aí sim, nos tornamos por um lapso de tempo a maior democracia racial do mundo. Mal acaba o samba, em vez de refletir sobre o que se viveu, damos as costas à lição e saímos por aí bisando a nossa falsa igualdade. Ou seja, não se pode fiar apenas no que se aprende sem livros, mas cadê as escolas? Cadê as famílias? Ah, estão todas pensando nos limites do abc e na moral e nos bons costumes (que não praticam).

Apesar de o samba e a marchinha estarem associados a alegria, a tristeza tem seu lugar. Vinícius de Moraes, em “Samba da bênção”[11] , parceria com Baden Powell, canta: “pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza”. A esse respeito, veio de Caetano Veloso, em “Desde que o samba é samba”[12] , o veredito definitivo: “a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim”, que ele completa: “o samba é o pai do prazer / o samba é o filho da dor”. Não podemos perder de vista que o samba é, mas também não é, folia e contentamento.

Em “Feitio de oração”[13], Noel Rosa assegurou que “batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio”. Mas vá lá que, durante o recreio, na saída da escola, no descuido das autoridades, alguém puxe um cavaquinho e um pandeiro. Pronto, portas abertas para aprender samba no colégio.





[1] Para ouvir o disco, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8rOMV0A5jd0
[3] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=vIsEwkADio4
[4] Para ouvir a música, clique aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=SON4_aiKGSk
[5] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=yojRDz-r-ek
[6] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=16QbOrvJJEU
[7] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=IflD32ahaqs
[8] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=D5Y11hwjMNs
[9] Não consegui link para esta música.

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Para ler a fantástica InComunidade, clique aqui.
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Comer água

Ao Andrezinho

Meu amigo me conta. Depois da consulta ao oftalmologista, tomou o elevador, já ocupado por duas mulheres. Uma delas reclamava de certa tonteira, reação a um medicamento tomado durante um exame, ele especulou em silêncio. Era chato ficar ouvindo aquilo, mas iam os três do décimo andar ao térreo e não havia alternativa. No oitavo andar, ganharam a companhia de uma senhora, uma senhora mais velha que todos juntos. A recém-examinada, mal o elevador se pôs em movimento, voltou a recitar sua ladainha de mal-estar. A velhinha não titubeou e disse: “Minha filha, você tá é gorda, obesa, precisa fazer exercícios, caminhar todos os dias e comer menos. Quando estiver com fome, distraia a fome com água.” As outras mulheres, por sorte, pelo menos foi assim que meu amigo nomeou o silêncio delas, não reagiram. Sem saber o que fazer, ele enfiou a cara no chão e torceu como nunca pela chegada ao térreo.

Essa coisa de beber água para tapear a fome me remete ao livro de um primo, o Dirceu Moreira Brandão. Claro, o Dirceu é pouco conhecido, alguns talvez tenham ouvido falar do pai dele, o poeta, escritor e deputado federal constituinte (estou falando da Constituição de 1946, aquela que tem, entre seus signatários, além de meu tio, Jorge Amado) Wellington Brandão. Mas o Dirceu também escrevia (sim, já não está entre nós) e escrevia bem — chegou a ganhar concurso literário, a escrever em jornais de Minas. Livros, no entanto, teve um, o saborosíssimo “Coisas de mascates” (edição própria). Suas histórias são as de boiadeiros, de gente que lida com a terra, que vive de fazer negócios, barganhas. Aliás, um dos melhores contos do livro, “Uma estranha vocação”, fala de um sujeito que troca — troca não, trama, um sinônimo muito particular usado nas Minas Gerais, beirada de São Paulo, cenário das histórias — tudo que cai em suas mãos. Um tipo assim não era raro na minha infância. Meu pai era um deles. Certa vez, no final da década de 1960, ele saiu para vender seu gado em Belém do Pará, longe, e bota longe nisso. Levou, salvo engano, uma semana na boleia de um caminhão, contando as paradas para descer o gado numa fazenda qualquer, onde batia e pedia pouso e pasto. Num mundo com precária telefonia, o velho sumiu, dois ou três meses sem dar notícias. Quando voltou, numa narrativa que realçava as mangueiras da cidade, a chuva diária, a rede para dormir, contou que trocou o gado por um carro. Mas onde estava o carro? Ah, em Goiás, no caminho de volta, já tinha se desfeito dele. Acho que trocou por gado, completando um ciclo que já dava a mão ao próximo. Ganhamos duas coisas de presente: uma vitrola portátil e guaraná em pó. Adoramos o primeiro e odiamos o segundo: um insulto às famosas caçulinhas (a garrafa pequena do refrigerante industrializado).

Voltas e voltas e não falo do conto do meu primo, razão pela qual puxei esse rosário. Em “Conversa de vaqueiros”, dois amigos conversam antes de dormir. Lembram-se, assim do nada, de algumas fomes por que passaram. Manuel Cabrito conta de uma vez em que ele e um amigo foram levar uma vaquinha a uma fazenda, mas a bicha era tão danada que eles, numa distância pequena, gastaram o dia todo. Quando chegaram lá, fome era significado miúdo para o que sentiam. Manuel comentou com seu parceiro de lida, e este, muito educadamente, perguntou ao dono da fazenda se não tinha jeito de comerem um requentado. O senhor, que já jantara, desculpou-se e encarregou a mulher de fazer a comida. Manuel tinha fome urgente, que promessa de comida não matava e o cheirinho do refogado só faria piorar. Para não perder a cabeça quando o alho queimasse no óleo, resolveu dar uma caminhada. Comeu uns matinhos, mas “não adiantou nada, porque insultou o estômago e ele pensou que eu estava jantando e aí ficou pior”. Manuel foi então para o riachinho e começou a comer água. “Comi água até encher. Mastiguei mesmo a água, que era para o estômago pensar que eu estava jantando uma sopa e dar tempo para esperar a janta do Zeca de Melo.”

Se a velhinha intrometida tivesse lido “Coisas de mascates”, poderia ter trocado a tagarelice pelo silêncio ou, pelo menos, por uma conversa sem importância, dessas necessárias quando o elevador desce e, se não parar, pode muito bem atracar no inferno. Inferno lembra morte, e é bom lembrar-se dela, pois o homem que trocava tudo por tudo, um dia, “entre uma conversa meio alterada e dois goles de pinga”, “barganhou dois tiros. E levou manta.” “Morreu tramando. Como nasceu e viveu.” Mas, prestem bem atenção, houve uma conversa meio alterada.

5.3.18

Uma ida à loteria

Às vezes faço uma fezinha. Os jogos de loteria são, a meu ver, o jeito difícil mais fácil de ganhar dinheiro. Sem derramar uma gota de suor, marca-se um número aqui e outro ali e, depois, entrega-se a sorte a Deus ou, acreditando-se na lisura dos homens, à máquina. Quem vai botar dificuldade nessa mecânica? Ninguém. Daí a ganhar, já é outra história.

Mas não era sobre o jogo que eu gostaria de falar, é sobre a experiência de hoje; que, esclareço, tampouco é sobre a experiência de jogar. O que tenho para contar tem a ver com o ambiente da loteria em que entrei. Primeiro, havia uma senhora que, revirando sua bolsa grande, descobriu-se sem a bolsa pequena, uma que ela havia mexido um pouco antes e onde guardava o dinheiro miúdo. Alardeou aos quatro ventos a perda, olhou para cada um de nós de cima a baixo, com desconfiança. Os menos vulneráveis a olhares acusatórios deram conselhos à senhora, que ligou para um lugar em que esteve, saiu e voltou para a fila até levantar a hipótese de ter sofrido um furto antes, talvez na rua. Mesmo assim, incontrolável e inocente, não escondeu de ninguém que ainda carregava na bolsa grande quatrocentos reais em notas de cem.

Isso não foi nada diante do sujeito que furou a fila e abordou a atendente de um modo que, segundo ele, quando passou a se defender, era leve, brincalhão. Não foi interpretado assim por ninguém, muito menos pela moça do caixa. O filho desse homem havia estado ali um pouco antes para pagar uma conta. Correu tudo bem no que diz respeito ao pagamento, mas o reclamante viu que, por erro próprio, a conta paga era outra, uma que não pretendia quitar. Cheio de empáfia, exigia um estorno. As moças da loteria, reagindo à antipatia com dose similar de antipatia, negaram que pudessem fazer alguma coisa, o sistema não permitia. Ele saiu de lá cuspindo ameaças.


Depois do dentista, fui comprar tinta para impressora e, na sequência, tomar um café. A loteria era bem em frente, não resisti. Fui jogar, tão somente isso, e saí impregnado daquela tremenda confusão. Só pensei numa maneira de me livrar do baixo astral: me meter no metrô e voltar para casa.

Entre o metrô e o prédio onde moro, um muro está pichado com a seguinte frase: “Por onde anda a empatia?”. Há um complemento, um gracejo que remete a favores sexuais, mas, no que pensei depois, não me importei com ele. Pelo caminho, fui martelando sobre a empatia em estado puro e concluí que ela foi sequestrada dos nossos dias. Restou-nos a repulsa, ou algo mais radical. Nada que fuja do que professamos ou gostamos nos atrai. Somos o avestruz da vez, com a cara enterrada no espelho.

Tenho uma vizinha de mais de 100 anos de idade. Não é raro encontrá-la sentada no pequeno jardim ou embaixo da marquise da portaria. Calada, olha tudo. Um dos seus gestos habituais é, certeira, pegar a mão de quem passa por perto e dar um, dois ou três beijos nela. Ganhei esses beijos ao chegar a minha casa e imediatamente desenhei uma utopia: as pessoas passariam a pegar as outras pela mão e, em seguida, depositariam ali um beijo. Não aquele de quem toma, por obrigação, a bênção dos pais, dos tios, dos avós, e sim aquele de quem agradece ao outro por ser justamente o outro.