27.6.14

O Sol

Tenho cinquenta e dois anos e seis meses e uma única esposa e três filhos e alguns porres que me tornaram inconveniente e outros alegre e muitos cujos efeitos ainda ecoam na minha singularidade e cabelos brancos em todos os cantos, menos nas sobrancelhas, e alguns livros escritos e outros lidos e incontáveis nem lidos nem escritos. Com essa idade toda, digo “ontem” a tudo relacionado ao passado. Não é um ontem propriamente poético; é que o tempo, ao nos marcar com sua passagem, reduz-se a uma dimensão imprecisa. Ontem pode ser ontem, anteontem ou vinte, trinta anos atrás.
Portanto foi ontem que, morando em Passos, ouvi os versos de Caetano Veloso: “O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça”. Na época, eu não sabia ter havido (quiçá ainda houvesse) um jornal, editado por poucos meses a partir de setembro de 1967, chamado “O Sol”. Talvez Caetano fale dele na sua “Alegria, alegria”, mas, no documentário “O Sol – caminhando contra o vento”, de Tetê Moraes e Martha Alencar, ele mesmo duvida disso. Para mim, a música cantava e canta o Sol, o astro — o astro-rei, como o nomeava Miss True, colega tratada pela orientadora de uma oficina literária como exemplo de quem se exprimia num estilo ultrapassado. É verdade, ninguém fala mais astro-rei, mas, apesar disso, Miss True — de quem nunca mais tive notícias, nos vinte e tantos anos passados desde aquela época — tinha jeito para a escrita e era uma senhora bem divertida. Miss True era o pseudônimo de Vera, ao qual se chegou a partir das associações entre “vera”, “verdade” e sua tradução para o inglês, true. Fugi do assunto. Eis o ponto: eu via, ou a música do Caetano me fazia ver, o sol entrando nas bancas de revistas que frequentava. E aquilo me aprazia e acalentava minha companheira, na doença e na saúde, desde menino: a preguiça.
Foto retirada do blog "Grande Fraternidade Branca". 

Falei em bancas, mas era uma banca só, a do Tavares. Ficava onde hoje funciona um destacamento da Polícia Militar, ao lado da Matriz, e onde funcionou a Justiça do Trabalho, na qual trabalhou por um tempo o forasteiro Adão Ventura, poeta dos bons, infelizmente já morto. Eu ia à banca por dois motivos. Pelos gibis, embora não tenha sido um fiel leitor deles. Pelas figurinhas (de cowboys e de jogadores de futebol), colecionadas com paixão, ainda que, no bafo, perdesse grande parte delas, mesmo aquelas que faltavam no álbum. Minha mãe, sempre chegada a um joguinho, ao saber que os álbuns davam prêmios, encontrou uma boa chance de simultaneamente jogar e investir seu modesto capital. Preenchendo determinada página, ganhava-se um brinquedo qualquer; conseguindo o quase impossível – tirar todas as figurinhas carimbadas e raras e assim completar o álbum –, o prêmio era mais vultoso. Eu e minha sócia-capitalista, dona Haydée, ganhamos um fogão Continental muito do chinfrim. Não sei se o vendemos ou demos, essa parte financeira era mesmo com ela.
A imagem da cortina de pó subindo pela luz do sol que entrava pela janela da casa de meus pais faz parte das minhas mais fortes lembranças. Devia acontecer logo depois de passarem a vassoura pela casa, não sei. Apreciar o desenho feito de poeira e luz me tirava do mundo por longos minutos, isso sim, sei muito bem. O sujeito afeito a esse tipo de distração não pode ser muito diferente do que fui, ou sou, ou estou sendo. Alguns me chamam de viajandão, mas, nomeado assim ou assado, adoro contemplar o por pouco invisível e acredito piamente na possibilidade de tirar leite das pedras. Certa vez, me expus assim, ó: “Gosto do movimento das montanhas. De assistir ao coito das pedras.”
Foco no sol, cronista.
Nossa infinita ânsia de consumir até o talo da terra reduziu a camada que a protegia dos raios maléficos do Sol, e agora somos obrigados a aguentar o tranco e as consequências de nossa boçalidade. No meu tempo de criança, eu vivia sob o sol, era moreno e não me preocupava com a agressividade da radiação ultravioleta. Em casa, me chamavam, e ainda chamam, de Nego. Esse apelido carrega uma característica bem brasileira: mistura um pingo de racismo — embalado em ironia — com outro de carinho excessivo.
Hoje, ô vida, por ficar pouco exposto ao sol, sou obrigado a tomar vitamina D.