6.2.17

De olho na tela

Gosto das salas de cinema, onde, ao contrário da televisão — mesmo daquelas de tela grande, modernas, de imagem perfeita —, assisto aos filmes com prazer. Em casa, não há o escuro que nos mantém suspensos antes, durante e depois do filme, particularmente do filme bom, e, além disso, os filhos passam conversando na frente da TV, a gente corre à cozinha sem motivo e ao banheiro por coisa pouca.

Nas salas, o filme começa na compra do ingresso, na escolha do assento, no café tomado um pouco antes da sessão. Feito o atleta no aquecimento para entrar na quadra, o espectador se concentra, faz flexões, alongamentos, tira o lixo da cabeça para que ela fique livre para o que vem a seguir, que não é uma disputa pela bola, mas é um embate entre ele e uma história que lhe será contada. O diretor ou a diretora tem de manusear muito bem suas armas, cabe a ele ou a ela e a seu elenco derrotarem o sujeito que pagou o ingresso e entrou naquela espécie de caverna. (Eu sou um dos que jogam duro, entro pra brigar.)



Fazem parte desse longo começo um trailer exibido com ganas de fisgar seu público futuro e uma propaganda de banco que tenta, por meio de facilidades mentirosas, atrair o cara cheio da grana ou o duro, principalmente este, meu igual. O filme já começou quando começa, esse é o ponto. Por isso, fico incomodado, já na preliminar, com os celulares cheios de luzes e sons — e as pipocas. Depois que enfim a história passa a ser contada, se não me seguro (ai, minha úlcera!), me transformo no chato do cinema, o tipo que faz “psiu” o tempo todo. Como não sou um milionário que pode ter uma sala exclusiva, respiro fundo (ai, minha úlcera!), me distraio desse monte de gente que não sai de si e começo a luta com o que me levou até ali. O ringue, naquele espaço de tempo, é a sala, e a glória é sair vencido, por nocaute ou ponto, tanto faz. Estou ali de sparring para o diretor e sua história, desde que não vacilem.

Nas últimas semanas, essa magia aconteceu duas vezes. Ao ver “Eu, Daniel Blake”, do britânico Ken Loach, e “Manchester à beira-mar”, dirigido pelo americano Kenneth Lonergan, de quem eu nunca ouvira falar. As duas histórias têm lá seus pontos comuns (além de ter cenas similares, quando os personagens buscam emprego pelas ruas da cidade), mas suas perspectivas são bem distintas.

O britânico, veterano diretor reconhecido por tratar dos perrengues sociais, não foge da sua temática e mostra como nos dias de hoje Kafka é a realidade. Os governos, apoiados em tecnologias que desumanizam e ao mesmo tempo não estão acessíveis para muita gente, tornam a vida daqueles que precisam de assistência social um inferno, como se já não bastasse o fato de precisarem de assistência social. No filme de Loach — assim como na literatura de Maria Valéria Rezende (a autora acaba de ganhar o prêmio Casa das Américas por seu “Outros cantos”, editado pela Alfaguara) —, o que salta aos olhos é a solidariedade entre pessoas que estão jogadas à margem. É isso que as faz resistir, mesmo que algumas não resistam. Melhor seria dizer: é isso que as faz resistir enquanto resistem. Ou ainda: é isso que as faz resistir um pouco mais.

Já o americano conduz seu filme na linha da trajetória do herói, a caminho da derrota, é bem verdade. Seu grande personagem está aos frangalhos (a gente descobre aos poucos a razão disso, já que o filme alterna o tempo todo o presente com o passado), mas é, de fato, um herói, sua força e sua ruína vêm de dentro dele, da forma como elabora ou deixa de elaborar os reveses da vida. Ele se desfaz, mas, no meu modo de ver as coisas, a cena final deixa no ar que ele terá no afeto um jeito de resistir (ele também resiste ou precisa resistir).

Se no filme inglês a opressão vem do “sistema”, no americano vem da vida íntima e familiar — também do acaso, do azar para ser mais preciso. Como já disse, duas perspectivas distintas, tratadas, em ambos os casos, de forma sofisticada e emocionante. 

Para desfrutar dos filmes, corra a uma sala de cinema, acomode-se na cadeira e deixe-se levar, dando a cara a tapa. Esqueça o celular e as pipocas. Na saída, uma cerveja ajuda a elaborar melhor as coisas, mesmo que se chegue à conclusão de que o mundo não vai nada bem, de que todos nós estamos nele, somos parte dele e temos um pingo que seja de responsabilidade pelo estado das coisas.

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