24.3.19
18.3.19
O que tenho para contar
Passeava pelo jardim quando fui fisgado pelo cheiro de uma
flor. Olhei atentamente para ela. A flor, rubra, exuberante, no ápice de sua
existência, era minha mãe. Minha mãe, intensa e breve! (Para meus irmãos)
Eu o via, aqui e ali, de quando em quando. Ontem, no parque,
ele estava visivelmente distraído, mexia os dedos e esfregava as mãos. Parecia
não ter se dado conta da minha presença, mas, do nada, olhou para mim e
perguntou: "Afinal, tio, o que veio primeiro, a cadeira ou a mesa?" (Para Marco Ajeje)
Se há uma criança peralta no mundo, é ela. E fui eu quem a
viu escalando esse prédio altão ali, ó. Sem proteção, subia de gatinhas pela
fachada. Quando chegou ao último andar, olhou para a sala daquele apartamento,
isso, o da direita. Não sei o que se passou, mas dali levantou voo. Sim, ela
tem asas. (Para Vitail Brandão)
"Tião, o que me conforta é que todos nós daquela velha
turma de certa forma nos demos bem." Sebastião, homem mais de gesto que de
palavra, dessa vez não respondeu apenas com um menear de cabeça ou um sobe e
desce de ombros. Estendeu os braços, virou as palmas das mãos para cima e,
quase sorridente, disse: "Menos os que continuamos vivos". (Para Atila Roque)
Vamos, vamos, telefone logo, conte a eles a novidade, já não
me aguento. (Alô... sou eu... sim... o quê?... pera... fale devagar... melhor
mais tarde?...) Ué, você mal abriu a boca, o que foi? (Eles têm novidade
também.) Qual? (Não conseguiram contar, estavam muito eufóricos.) (Para Tereza Portugal)
Certa vez deitei-me com uma mulher tão farta que tanto eu
quanto ela lamentamos o fato de eu não ter um terceiro braço e outras dezessete
mãos. (Para a mulher que, nos meus treze
anos, era dona das minhas fantasias)
A luta durava horas senão dias senão anos senão séculos. O
soldado do exército inimigo, espada cruzada com a minha, me perguntou: "O
que você tem contra mim ou eu contra você?" Sem respostas, baixamos as
armas. Os exércitos que nos resguardavam, zelosos de suas responsabilidades, abriram
fogo em nossa direção. Tudo leva a crer que estamos mortos. (Para Marielle Franco e Anderson Gomes)
Querem saber sobre a longevidade da esperança. Pois bem, eis
a verdade: ela é a primeira que corre. (Para
Eduardo Lacerda)
Os dois homens no filme relembravam uma história que, no detalhe
do detalhe, era a vida dela, que fazia da ida cotidiana ao cinema seu único
luxo — na sala, chorava sem censura de ninguém. Até então e depois de tantos
anos, nunca tinha visto na tela alguma coisa que se parecesse com sua vida, com
sua vidinha. Prestou ainda mais atenção nos homens. Olha só, acabavam de contar
sobre as travessuras de seu pai alcóolatra. Aí já era demais, uma intromissão
sem tamanho. Não, ali não ficaria, encontraria outro lugar para chorar em paz. (Para Shirley Villela)
14.3.19
9.3.19
4.3.19
Meu curriculum vitae
Graduado em álbum de figurinhas, com mestrado em perdê-las no bafo.
Pelo assombro, doutor honoris causa em situações de emudecimento.
Aluno ouvinte de ideias furadas, ourives de angústias sem brilho, rábula das causas cabreiras.
Químico apenas teórico na faculdade do amor sem beijo.
Pároco da igreja de um deus ambivalente, metade qualquer coisa, metade coisa nenhuma.
Militante separatista do partido de um homem só, com pós-graduação em ouvir de pé e impassível qualquer sermão de louco.
Na universidade dos contempladores de pôr do sol, bolsista por mérito.
Grão-mestre em ruína alheia, vulgo amigo da onça.
Técnico ferroviário nesses trens lá de Minas, metalúrgico em céu de diamantes, subcoordenador de estados utópicos de exceção.
Síndico em condomínios que não saem do papel.
Preparador de infantocanibais barítonos para coral de descontentes.
Campeiro que anuncia com dez badaladas o passado logo adiante.
Regador de desertos, doxógrafo de filosofia de botequim, copidesque de não escritos.
PhD em dialeto de bêbados maltratados pela lucidez.
Professor emérito de Ignorância III, turma de quarta-feira (sexta, caso chova na quarta).
Todos os títulos podem ser confirmados com um simples pulo em cidades a que nunca fui, Anta Gorda ou Não-Me-Toque, no Rio Grande do Sul, Feliz Deserto, nas Alagoas, ou naquela que vivi por tanto tempo, Passos, a princesa do Sudoeste de Minas ou a cidade que anda. Nesta, não saia perguntando por mim pela rua, procure o Limão, ele guarda meus diplomas, que de fato são as digitais que deixei nos copos em que tomei a primeira dose, a segunda cerveja, o terceiro fogo paulista, enfim, nos copos que me deram verdadeiras aulas de como viver honestamente uma vida à toa.
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