20.6.22

Bom dia

 

Devo esta crônica a Cortázar, pois foi escrita depois de ler “Retorno de la noche”, um conto de 1941 que só veio a público após a morte do escritor, em 1984.


Acorda e, de pronto, dá-se conta de que está vivo. Não é pouca coisa, ainda que seja o tipo de constatação que não se compartilha com ninguém. “Hoje acordei e estava vivo.” “Ora — reagirá o interlocutor —, que tremenda coincidência, eu também.” É difícil encontrar a diferença naquilo que é comum a todos, mas a verdade é que uns têm bunda grande, outros, nariz adunco e há os que possuem mãos menores que as tão pequenas da chuva (uso a imagem de E. E. Cummings, na tradução de Augusto de Campos).

Existem, enfim, aqueles que se surpreendem por acordar vivos. Os tristes? Talvez sim, e é provável que alguns deles se decepcionem com isso. Os que foram dormir depois de um instante único de felicidade (no amor, no trabalho)? Podem temer o dia à frente, pois há um passado radiante, com alta chance de não se repetir.

A vida lhe tem sido boa e ruim, deprimente e excitante. Portanto, ao se beliscar para ter certeza de que está vivo (no mínimo acordado), age como o homem que, ao se olhar no espelho, se pergunta por que aquele nariz tão grande não sendo nem lobo para cheirar a netinha destemida, que enfrenta o bosque. “Estou vivo.” Levanta e dança? Continua deitado e adia chegar ao cotidiano que, pela manhã, o quer de dentes escovados, banho tomado e disposto a trabalhar e não deixar a engrenagem do lucro e da produção emperrar?

Na noite anterior, dormiu na sala, diante de uma televisão fastidiosa, e nem sabe como foi para o quarto. Na casa não existe nenhum cachorro, que, numa hora dessas, poderia acordar, levantar as orelhas e, num suspiro, voltar ao sono. (Os cachorros se admiram por acordar vivos?) Bem, foi uma noite como um monte de outras na sua vida de anos que, para serem contados, demandam vários dedos a mais que os vinte de seu corpo. Tem vontade de dançar não para celebrar alguma alegria, algum prazer. Dançar para chamar a chuva (e agarrar-se às suas mãos) e, com ela, limpar o quintal de sua memória da infância.

Apesar da vontade, não se levanta, nem mesmo requebra sobre o colchão. Se tivesse um cão, o bichinho já o teria tirado de suas cismas, exigido uma água limpa, a ração matinal, o passeio. Eis a percepção exata do tamanho de sua solidão. Solitário, mas com ganas de dançar. Bate palmas. Primeiro na cadência de um partido alto. Logo se perde, atravessando o samba. Tenta outro ritmo. Novo desacerto. Bate então palmas como se, à porta da casa de alguém, se anunciasse. “Olha, vim trazer essa encomenda que o papai mandou.” “Eita, menino vivo esse do Bandolim.” Guarda de um tempo nem tão delicado a delicadeza. Descobre então que será ela a sua parceira de dança. E isso o faz pular da cama. 

Coloca um dos braços sobre a barriga, estica o outro no ar. Sai, de manso, dançando uma valsinha. “Não vá pisar no pé de sua parceira!” “Tranquilo, as sombras não têm pé.” Capricha, solta o corpo. Troca a música. Michael Jackson. James Brown. Jorge Benjor. Saracoteia, afinal acordou vivo. Tira a mão da barriga, abre os dois braços, olha para cima (para o céu, se estivesse ao ar livre) e dança solto e sorrindo. O horror está lá fora; lá fora com seus algozes e energúmenos, com aqueles que só se sentem vivos ao arrancar a vida de alguém. Não é nenhum desses.




4.6.22

A menina me chamou de poeta

Sempre achei estranho ser chamado de poeta e já explico o porquê. Antes, recorro à memória e encontro o rosto de uma moça bonita, mais velha que eu, portanto fora das minhas possibilidades de conquista. Ela me chamou de poeta, e não me lembro o motivo. Talvez fosse por conta de alguma bebedeira na qual, exibido, eu tenha recitado um poema – na adolescência, a cada porre, declamava, compungido, a introdução de “O Ébrio” (“Nasci artista, fui cantor...”).

Aquela moça era mesmo mais velha? Talvez fosse uns meses, um ano, vá lá. Na juventude, essa diferença é suficiente para separar mulheres de meninos. Hoje, pode ser que ela esteja com a minha idade, se não estiver mais nova. Como nunca mais a vi e não soube de seus caminhos pelo mundo, ela, de quem nem o nome guardei, continua com seus dezessete anos.

Confesso que experimentei uma alegria danada ao ser chamado de poeta. Depois, bem, depois caí em mim, eu não era poeta coisa nenhuma. Naquela época, compunha umas musiquinhas, portanto era exagero ser chamado assim. E agora, com dois livros de poesias lançados, mantenho a desconfiança de que essa roupa não me veste.

Poeta é um negócio grande demais. Poeta é aquele francês, gênio aos dezessete. Poeta é o português de sete faces. Poeta é aquela polonesa cujo nome já é uma odisseia. Poeta é o moço de Itabira ou a moça que, em versos, romanceou a inconfidência. Enfim, poeta é imensidão. E eu — peço vênia ao poeta da delicadeza —, eu sou imensidinho. Mas tem mais: poeta é sensível, e eu não sou. Quer dizer, não era.

Tenho me tornado sensível até demais. Telespectador acidental, me vejo chorando (mas disfarço) ao ver as crianças cantando num programa de calouros sofisticado, com grife, e fico bambo (sorte estar sentado) ao assistir à cena na qual Zé Leôncio (Marcos Palmeira) se descobre pai de Zé Lucas de Nada (Irandhir Santos). Não é sensibilidade, é sentimentalismo, e a pequena distância que separa o sensível do sentimental transforma o poeta num nada. 

Até parece que estou preocupado com essa história de ser poeta ou não. Longe disso, meu ponto é outro, é o de ficar abismado em saber que já me contentei com pouco, com uma palavra dita por uma menina linda e inalcançável. Ah, mas, se me alegrei com algo assim tão básico, acho que sempre tive alma de poeta.