7.9.25

Antimusical

 


Ouço menos música, constatação que me entristece, pois sempre fui um ouvinte dedicado, tentei até tocar um violãozinho, no que, para sorte do mundo, fracassei. Nos festejos familiares, tive os primeiros contatos com as modas de viola cantadas por meus pais, primos e amigos. Depois, veio a trilha dos meus irmãos com as românticas italianas, sucesso nos anos de 1960, os Beatles (e o iê-iê-iê tão nosso) e o garoto Chico Buarque, xodó das meninas. Andando com as próprias pernas, conheci o rock, fazendo de Pink Floyd e Queen meus preferidos.

Houve um dia, porém, que chegou lá em casa o "Milagre dos Peixes ao vivo", de Milton Nascimento, e sua audição não só transformou o moleque que eu era como também abriu-me as portas para a MPB. E tome os clássicos (Noel, Pixinguinha Dorival Caymmi e Bossa Nova), a geração de 1960 (Chico, Caetano, Gil, Betânia, Gal, Paulinho da Viola, Tom Zé, Sueli Costa), a que veio em seguida (Sérgio Sampaio, Rita Lee, João Bosco, Joyce, Secos e Molhados) e a posterior (os independentes, como Rumo, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé). Não fui um grande fã do rock dos anos 1980, ainda que escutasse Marina, Cazuza e Titãs. Por outro lado, mergulhei em Cartola e toda a dinastia do samba.

A música instrumental tomou seu lugar não sei bem como (as orquestrações do disco ao vivo do Milton ajudaram), mas certa hora Egberto Gismonti me tirou do chão. No rastro dele, vieram o pessoal do samba-jazz e, orientado pelo avô de meus filhos, o próprio jazz, em particular seus ídolos Chet Baker e Modern Jazz Quartet. Comecei a escrever ouvindo música, em especial a instrumental, mas não somente. As palavras de um Cacaso, de um Fausto Nilo ou de um Vinícius de Moraes não atrapalhavam as que eu, catando milho, escrevia na antiga máquina de datilografar —— primeiro manual, depois elétrica —— e, mais tarde, no computador.

Tudo isso ficou para trás. Não, tenho de me corrigir. Continuo adorando música, mas minha relação ficou mais complexa. Por exemplo, não consigo escrever com música, nem a mais suave das clássicas. Como passei a usar fones para fugir das reclamações sobre meu gosto musical feita pelo pessoal de casa, hoje preciso estar isolado —— no melhor momento caminhando pelo Aterro, pela Urca ou pela Lagoa. Tem acontecido de eu começar a ouvir um disco (sempre inteiro, detesto aleatoriedade ou lista) à noite e perder o sono. A música (mais que os filhos) me tira o sono. Fico excitado, repito não sei quantas vezes o disco todo ou algumas de suas partes.

Claro que, com menos dedicação, tornei-me seletivo. Digo assim para não confessar que não acompanho as novidades. O pessoal xinga ou elogia os novos cantores, diz que é tudo uma pasmaceira ou uma maravilha sem fim, e eu desconheço o objeto do ódio ou do amor. Quer dizer, de quem falam, eu sei, todos ocupam a mídia, mas estou por fora do que tocam ou cantam. De todo jeito, alguns chegam a mim quer porque minha filha ou meu caçula dizem que tenho de ouvir fulano, quer porque uma revista elogia beltrana de tal. Procuro escutar e gosto de uns, de outros, não. Os que gosto, como Alice Passos, Luedji Luna e os não tão novos assim, Márcio Faraco e Emicida, incluo na trilha sonora de minha insônia (ou das passadas fortes sob o sol) na qual já estão Sivuca, Miles Davies, Titane, Lula Queiroga, Pat Metheny, Mônica Salmaso, Deep Purple, Zeca Pagodinho, Fátima Guedes, Vitor Ramil, Marianne Faithfull, Keith Jarret, Nina Simone, Led Zeppelin, Joaquin Sabina, Novos Baianos, Leonard Cohen, Elizeth Cardoso. Sem esquecer Chopin e Satie. Sem esquecer... ah, lista inumerável!

Preocupado com a minha disposição no dia futuro, me policio nas madrugadas e lá pelas tantas tiro o fone do ouvido. Tento dormir, o que não acontece de imediato, é preciso um tempo até que ocorra o desmame do vício.

Um comentário:

Elê disse...

Amigo, alguns músicos nem ouvem música em casa. E no entanto,não escrevem tão bem como você. Acho que o violão traria o letrista para mais perto de nós, vocação esta que enxergo facilmente na sua escrita. Mas mais inteligente é não nos cobrarmos, por isso por aquilo.Chega uma fase em que dizemos: ok, eu aceito ser assim, exatamente como sou. Como leitora, fico encantada com seus textos.