25.8.25

Etiqueta

Na minha recente ida a Belo Horizonte, uma de minhas irmãs contou que, nos anos de 1960, ao instalarem o primeiro telefone na casa de meus pais – o 752, um dinossauro que, para falar em outra cidade, precisava da ajuda de telefonistas, e uma chamada de Passos ao Rio de Janeiro poderia demorar horas a fio até se completar –, mamãe disse que um dia veríamos numa tela a pessoa com quem falaríamos, ou seja, ela anteviu a chamada de vídeo. Minha irmã acredita que essas visões futuristas de dona Haydée estavam ligadas à leitura de Julio Verne. A literatura parece ter alguma utilidade, vejam só. Meu interesse não é a literatura – ainda que, vocês verão, também seja um pouco –, é ter sido alcançado pela lembrança materna ao voltar ao Rio de Janeiro.

Nossa vida está inteirinha no celular, o que é bom. Mas, gente, inventaram bem antes dele o fone de ouvido, que, numa viagem – dentro ou para fora da cidade –, nos ajuda a ouvir música ou áudio ou ver um filme ou jogar esses joguinhos barulhentos sem importunar ninguém. É a coisa mais simples do mundo. As mensagens trocadas no aplicativo, por sua vez, podem ser escritas, não é preciso usar o áudio. Eu não preciso saber – como soube – que a filhinha do rapaz sentado na poltrona atrás da minha estava com o pé machucado, que assim que ele chegasse ao destino iria levá-la ao médico. Mais que isso, que pensava em recorrer à justiça para ficar com a guarda de suas três crianças, no momento nas mãos de uma mãe relapsa. Um drama sério, mas e meu sono? E a leitura da moça ao lado? Foram para as cucuias. Para lá também foram o sono, a leitura, a conversa fiada recém-iniciada por dois estranhos quando o telefone da senhora na poltrona que o corredor separava da minha tocou numa altura impressionante. Imagino que ela já não escute tão bem – eu mesmo perdi a audição supimpa da juventude, o que, segundo a mamãe (de novo), seria inevitável já que ouvia o Pink Floyd em volume doentio –, mas há meios alternativos de saber se o celular está tocando, o famoso modo vibratório. Enfim, é preciso respeitar o outro, pensar que o coitado não está minimamente interessado na sua vida. Além do mais, preservar a intimidade é uma forma de se proteger nesse mundo abarrotado de larápios.

Minha rabugice encontrou mamãe nas curvas perto de Barbacena, cidade das flores, da aeronáutica e do terrível hospital de doentes mentais, hoje, felizmente, fechado. Dona Haydée prezava a etiqueta, que impunha aos filhos – tenho uma boa educação pequeno-burguesa, apesar de ter sido rebelde. Não digo os bons modos à mesa, nem a educação superlativa que acha um absurdo chamar os outros para comer, quando se pode chamá-los para almoçar, lanchar ou até mesmo cear, mas uma etiquetinha nesses tempos de exposição excessiva ao mundo virtual cairia bem.

Digo mais, podemos estender os bons modos ao mundo literário. Não, não vou sugerir que deixem de ler na rua, no ônibus, onde quer que seja – a leitura não incomoda ninguém. Tampouco direi que não se deve molhar a ponta dos dedos para virar as páginas (mesmo porque muitos leem livros eletrônicos). Por favor, leiam sempre e muito e do jeito que quiserem. Meu assunto é com o escritor circunstancialmente simpático, aquele que é tomado, às vésperas de um lançamento, por uma amabilidade jamais vista. Acho normal convidar, em rede social, deus e o mundo para um evento nosso. Acho razoável abordar com parcimônia pessoas pelo WhatsApp. Agora, enviar mensagens particulares, forçando uma intimidade inexistente, é duro na queda. Pessoas com quem não convivo, sem noção de tudo, já me disseram que sou o escritor/leitor mais importante do mundo. Ô, simpático de ocasião, segura as pontas.          

Para rabugentos feito eu, mamãe também teria conselhos a distribuir. Talvez dissesse: “Ao comer o pão de enxofre que o diabo furtou, mastigue de boca fechada, o cotovelo longe da mesa, o corpo ereto, os pés bem postados no chão. Não avance na comida com sofreguidão, dê-se ao paladar. Distraia-se pensando na infância, na adolescência, na sua história. Não cuide da vida alheia.” Ou seja, me orientaria a, em vez de criticar o outro, me ajeitar comigo mesmo. O fone de ouvido, citado ainda há pouco, serve para eu ouvir o velho Pink num volume confortável e me libertar do movimento dos demais passageiros do ônibus. Posso simplesmente ignorar os excessos do colega de escrita – senão perdoá-los. A ansiedade mata a gente, sei como é.

2 comentários:

Leonardo Almeida Filho disse...

E agora? Que que eu faço? Continuo te achando meu escritor/leitor mais importante do mundo 🤪

No Osso disse...

Você pode, Léo, não é circunstancial. É amigo de toda hora.