21.11.21

E agora?

 

Na semana passada, enfrentei uma situação inédita: eu — que não existira por bilhões de anos e, depois disso, fizera um aninho (com corpo de dois, pois nasci com quase seis quilos), em 1962; 18, em 1979; 45, 59, já no século XXI — completei 60 anos. A burocracia acha por bem me considerar idoso a partir de agora, mas a gratuidade no uso do transporte urbano só virá daqui a cinco anos; o fim da obrigatoriedade de votar, daqui a dez. Enquanto não usufruo das benesses nem chego àquele momento em que se escancara a pouca importância dada pela comunidade ao que pensam septuagenários, octogenários, nonagenários e centenários, começo a ouvir, como marteladas na cabeça: velho, você é velho; velho és, velho serás. Assim seja, não me envergonho.

A proximidade do aniversário me coloca a cavucar a memória. Faço balanços — sonhos realizados e frustrados, amores feitos e desfeitos, mortos e vivos — e agarro-me, estimulado por algumas palavras, a nostalgias. Rolimã, carrinho de sebo, enxurrada, corgo, mamona.

É possível que meus netos nunca experimentem a sensação de liberdade e perigo que é descer em disparada uma ladeira de Minas sentado num carrinho de sebo ou rolimã — nem meus filhos o fizeram. Como anda o clima, as enxurradas não serão mais comportadas e limpas como as que corriam no Beco dos Aflitos e me chamavam: desce, Xandão, vem molhar os pés, lavar a alma. Elas se assemelharão a tsunamis e serão formadas pela chuva acumulada em muitos verões e primaveras de intensa estiagem. O corgo da minha aldeia, antes esgoto a céu aberto — para dar continuidade à guerra de mamona lá na outra banda, um empecilho a ser transposto em salto com vara de bambu —, agora está sob uma avenida, tampado com concreto. Recusam-lhe o sol e a margem de terra, e o corgo se vinga inundando a cidade vez ou outra. As coisas em estado de esquecimento reagem à passagem do tempo, bem sei, assim como sei que essas recém-lembradas, e as palavras que lhes dão vida, são mais velhas que eu ou, ao contrário, ficaram pelo meio do caminho ainda jovens, condenadas a um mundo sem futuro.

O Brasil a seu modo também reage ao tempo. Meus pais, nascidos na passagem da segunda para a terceira década do século XX, viveram transformações enormes ao longo de suas vidas: foram da popularização da luz elétrica e do telefone à internet incipiente; cresceram em um país com taxas enormes de mortes de recém-nascidos e morreram quando havia acontecido uma boa melhora da expectativa de vida. Meu tempo tem sido igualmente marcado por mudanças tecnológicas. A inteligência artificial está aí e promete facilitar o nosso dia a dia, mas poderá, ao reinventar o mundo do trabalho estimulando a virtualidade, desarticular os elos que conquistamos como trabalhadores. Em consequência, corremos o risco de amargar uma solidão sem tamanho. Apesar de avanços aqui e ali, meus pais não assistiram à diminuição da desigualdade social; o mesmo ocorrerá comigo. O Brasil é fiel a suas atrocidades.

Mal pisei nos 60, ouvi, à exaustão, que agora sou sexy. Já me contaram inúmeras vezes aquela velha piada — velho sou eu, ela é anciã — de que a vida sexual do sexagenário ocupa um livro de cinco mil páginas (falam em números diferentes: maiores, os pessimistas; menores, os otimistas), todas em branco. Ainda que a medicina nos dê esperança de um futuro confortável, no qual caberá alguma estripulia, inclusive sexual, não é possível concordar que os 60 sejam os novos 30, outro lugar comum. As varizes, a dificuldade de compreender certos assuntos levados à mesa pelos filhos, saudades absurdas, medos indefinidos, a audição traiçoeira, as dores, o sono miúdo e entrecortado, a má vontade com músicas novas, enfim, um conjunto de somenos faz com que os 60 continuem os 60 de sempre, num mundo modificado, é verdade. Calças curtas, chinelos de dedo, menos formalidade, mais transparência, eis o velho de hoje. Há um par de dias, sou um deles, e, a partir de agora, é o que serei até o fim. 

Nostálgico, crítico, irônico, assim, não muito diferente de sempre, dou os primeiros passos nos 60. Para não ceder ao pessimismo, cultivo planos. Um deles é o de continuar a escrever, tarefa que desdenha da velhice e que desempenho, estando com os graus dos óculos bem ajustados, com toda a minha potência.





6.11.21

Pedaço de Minas

Chove, e Nelson Freire está morto. Ouço, neste instante, Encores, disco lançado em 2019 para comemorar seus 75 anos. A morte e a chuva não me entristecem, mas me roubam a alegria. Recorro à música como forma de compensar a perda. A chuva, neste ano seco e maltratado, cai como festa.

Em um texto que estou começando a escrever, um dos personagens é preso em Formiga, cidade de Marco Túlio Costa, que, sem saber de minhas maquinações recentes (praticamente ninguém sabe delas), repassou a um pequeno grupo (nós dois mais Alexandre Marino e Antonio Barreto) uma matéria sobre Lamartine Babo, autor de “Serra da Boa Esperança”, música feita quando o compositor esteve na cidade de Boa Esperança — não muito distante de Formiga e de Passos, minha cidade natal — para conhecer uma pessoa com quem correspondia, Nair, codinome de Carlos Netto, um dentista que, passando-se por mulher, conseguia fotos autografadas de artistas do rádio. (Não conto essa história aqui, seus detalhes pitorescos são encontrados na internet.) Nascido em Boa Esperança, Nelson Freire deixou a cidade a conselho de sua professora de piano, que se viu incapaz, ao fim de poucas aulas, de ensinar muito mais ao molecote de quatro anos. Conselho acatado, a família se mudou para o Rio, e Nelson se tornou um dos maiores pianistas do mundo.

De Boa Esperança, onde esteve uma única vez, Lamartine Babo foi a Formiga, cidade à qual voltaria com alguma frequência. Numa delas, impressionado com uma cantora, Babita, mãe do músico Zebeto Corrêa, pediu-lhe que cantasse uma composição recém-feita, “Eu sonhei que tu estavas tão linda”. A música foi um sucesso à época — décadas de 1930, 1940 — e, tempos depois, marcaria minha juventude, pois, como acontecia Brasil afora, inclusive em Passos, Francisco Petrônio, em seu famoso “Baile da saudade”, a cantava no ponto alto do show. Meu texto em processo começa num baile daqueles, quando dois jovens deslocados em sua pequena cidade dançam a música que lhes parece o passado do passado, mas, guiados por ela, acabam tornando-se namorados.












Chegaram ao mesmo tempo a notícia da morte de Nelson Freire e as histórias de Lamartine Babo. O pesar da primeira e a graça da segunda, bem como sua ligação com o meu texto embrionário, me levaram a pensar sobre esse pedaço de Minas, a passagem do sul para o oeste, onde estão fincadas minhas raízes. Lá, o presidente atual e seu projeto obtuso, extremista e incivilizado foram eleitos com mais de 60% dos votos, um motivo e tanto para me fazer triste.

Triste, formulei, sem pretensão de abrangência, deixando a memória e o esquecimento se entenderem como bem quisessem, uma lista de artistas daquelas bandas — Milton Nascimento, Ezequias Marques, os irmãos Grilo, Alexandre Marino, Stella Maris Rezende, Gustavo Lemos, Gilda Parenti, Antonio Barreto, Reinaldo Barbosa, Marise Pacheco, Selton e Danton Mello, Edel Holz, Elpídio Lemos de Vasconcelos (avô de Maria Valéria Rezende), Marco Túlio Costa, Hilda Mendonça, Silviano Santiago, Bárbara Mançanares, Marco Ajeje, Wagner de Castro, Lilo Clareto, Arlete Porto Soares, João e Gilberto Abreu, Zininha Negrão, Gabriel Villela, Tibless Machado, Gilvan de Oliveira, Maurílio Romão, Consuelo de Paula, Váscoli, Irmãos Jerônimo, Celso Faria, Kaju Ribeiro, Ramon Pitter, Sebastião Borges, José Reis Santos, Jerônimo Neto, Ana Lis Soares, Wagner Tiso, Zé Vicente —, uns vivos, outros mortos, uns de renome nacional, mundial, muitos em busca de seu espaço, vários da cena local. À medida que pensava neles, eu os chamava, e ainda outros, para, juntos, enfrentarmos a perda de Nelson Freire e, ao mesmo tempo, encararmos o desafio de devolver nosso país ao campo da disputa democrática e republicana.