25.11.18

É treta


Palavra da moda é “treta”, que tem o sentido de um bate-boca meio desvairado e não de uma discussão ponderada. No limite rígido do dicionário, e me valho do Aurélio, os significados da palavra são “ardil, estratagema” e “habilidade na luta ou na esgrima”. Já “tretas” tem o sentido de “palavreado para burlar”, e “tretear” é “fazer uso de tretas”. Dando um nó nessas várias pontas, a treta tem a ver com uma esgrima da boca pra fora.

No calor das paixões atuais, não fazemos outra coisa que não seja promover tretas, já que o que importa é espetar o outro com a ponta rombuda da nossa espada. Nesse momento político conturbado, há os que, com ironia, clamam por treta mais amena, tipo aquela que, apenas para citar uma, surge quando se aponta o dedo para o que é considerado uma fraude literária. Afirmar, por exemplo, que o “escritor fulano é um engano”, a despeito de ter faturado vários prêmios e vendido milhões de livros, pode gerar uma troca de sopapos verbais inacreditáveis. Mas, diante das radicalizações do período eleitoral ou das diretrizes para as quais os futuros governos (federal e estaduais) têm apontado, o enfrentamento em polêmicas menores não passa de um sonho de consumo de toda gente.

Apesar de minha mineirice e aptidão à reserva, andei trocando uns sopapos nesses tempos passionais. Procurei combater sem me utilizar de fakenews, entretanto dei uma e só uma derrapada. Foi naquele caso, se não estou enganado ainda não de todo elucidado, da mulher gaúcha em cuja pele teria sido cravada uma suástica. Comprei logo a história de ela ter sido atacada, mas há uma hipótese grande de que tenha sido uma imolação. Em minha defesa, advogo que o grave é o símbolo nazista circular em tom exitoso pelo país. Naqueles mesmos dias, uma igreja na região serrana do Rio de Janeiro amanhecera com várias suásticas pichadas em suas paredes.

Muito já se disse sobre as fakenews, motor de arranque de muitas tretas, mas, para além de seu uso pelos desavisados — os idosos da família, os assustados da hora, os ignorantes, os crédulos de toda sorte —, o que me chamou a atenção foi o fato de que algumas pessoas usam a falsa notícia sabendo que é mesmo falsa. Tive a experiência de alertar uma pessoa sobre uma mentira que disseminava, e ela pouco se importou com isso. Seu objetivo, me disse, era incomodar o outro lado.

Estou fugindo da minha aspiração ao começar a crônica. O que eu queria dizer é que não tarda muito alguém fará uma antologia daquelas “tretas das galáxias”, as mais mais. Haverá capítulo dedicado aos argumentos pueris (os que falam em comunismo infiltrado em todas as reentrâncias da sociedade têm lugar ao sol), aos litígios violentos, às ironias certeiras, não podendo faltar o pequeno tratado da vergonha alheia. Tudo, claro, ilustrado pelos memes, que não são desse mundo. Não me admiro se um escritor conhecido, dos bons ou não, que engana ou não, se lance a essa empreitada. Acho mesmo que ela servirá como um documento indispensável de nossa época, sem contar, é óbvio, que, se o clima estiver menos exacerbado, abrirá o período de descer o malho no trabalho do colega de arte e, com isso, dar início a uma nova onda de tretas.

12.11.18

Sinuca de bico

Um sábio, desgostoso do pouco interesse pelo saber, resolve dar as costas justo ao saber e viver de brisa. Mas isso, em vez de livrá-lo da sabedoria, o torna ainda mais sábio. Diante do paradoxo, o sábio, enfim, não sabe.

Já a mulher que só encontra sentido na vida recheada de sexo e caipirinha, ao ver-se envelhecendo, cada dia com menos apetite para os embates do corpo e com menos fígado para a bebida, conclui que, sim, viver sem sentido também faz sentido. Mas não fica lá muito convencida.

Por sua vez, a criança precoce — a que a está à frente do seu tempo e, por isso, antes de deixar de ser criança já não é mais criança —, quando entende que no futuro viverá de nostalgia, vê correr entre os dedinhos o futuro que não terá.

O confuso, aquele débil para quem a melhor reta está dentro do ponto, é, entre muitos, o menos confuso pois, na sua visão de mundo, Deus é prolixo demais.

A avó materna do primo paterno da tia de um vizinho tem convicção de que as voltas que o mundo dá não são no sentido defendido pelos físicos. O mundo roda de banda, ela advoga para uma plateia de dinossauros.

Provocador, o reverendo espalha por aí que ser e estar dera origem ao universo. Argumenta: primeiro foi o verbo. Se corrige: foram os verbos. Volta atrás, essa diferenciação só existe numas malditas línguas latinas. E se põe a pensar em como seria no mandarim.

A poeta, que não aceita ser tratada por poetisa, pergunta a musicista se algum dia ela havia sido chamada de música, feminino de músico, que é como os instrumentistas são conhecidos. Recebe como resposta, de uma região ao sul do peito, um dó em forma de vento, que não nomeio em consideração à poeta, que não gosta de rimas.




O ventríloquo se dá conta de que está doente quando o boneco dispara a falar verdades. A pior de todas: ele, o ventríloquo, é que é o boneco.

A mulher fica feliz ao compreender que, quando deu à luz, o que era deixou de ser e o que não era passou a ser. O homem ao seu lado caçoa dela: ora se não é assim com todos, até com os pais! Não estava falando da maternidade, ela responde em tom de injúria, mas de não ser plena antes e de o ser depois. O homem canta de galo, de galo de uma nota só, que é o que pode fazer no momento.

Há outras sinucas de bico, mas elas saltarão aos olhos nos dias mais escuros.