30.8.12

Sem pressa




Manoel de Barros, no poema “Andarilho”, do “Livro sobre nada” (Poesia Completa, Editora Leya), afirma categórico: “andando devagar eu atraso o final do dia”. Para quem não sabe o que é poesia, poesia é essa rasteira no senso comum, é esse dano irreparável na lógica que comanda nossa vidinha miserável.




Certa vez batia perna com meu primo Bosco pelas ruas da Vila Madalena, em São Paulo. Ele pediu para eu andar mais devagar; com pernas menores que as minhas, não conseguia me acompanhar. A partir de então, meu ritmo é ditado por passos miúdos, com o que desperdiço minha altura e o tamanho potencial de minhas passadas. Devagar, passei a contemplar o mundo. Eu contemplo o mundo.
Já vai um tempo, caminhei por alguns quarteirões atrás de um sujeito que olhou todas as bundas que cruzaram seu caminho. Não desprezou nenhuma. Olhou a de uma moça mignon. A de uma rechonchuda. Torceu o pescoço para contemplar a da jovem. E, igualmente, a da velha, a da negra, a da branca, a da moça manufaturada — a Glória, bairro onde estávamos, é um ponto de travestis. Se eu tivesse pressa, não teria apreciado um tipo desses, feito à medida para ficcionista do meu quilate — meio vagabundo, quero dizer.
Andar devagar, nos dias de hoje, tem muitos inconvenientes. O mundo está acelerado. Uns ultrapassam outros — sejamos sinceros: o objetivo é ultrapassar os outros. Aos que não estamos totalmente isentos do espírito competitivo resta lastimar ficar pra trás. (Lastimar, lastimamos, acelerar o passo, nem pensar.) Em meu primeiro livro, lançado em 1995, há um conto (“A quarta queda”) que esbarra nessa questão, mas, no caso, a competição se dá entre pessoas que se arrastam. A metáfora, arrisco dizer, é esta: mesmo quem perdeu, quem, portanto, se arrasta, ainda guarda uma ilusão de não ser o último, de não ficar na rabeira do mundo. Ser o último seria a derrota definitiva. Não é de hoje que estou olhando o mundo de esguelha. Devagar, e sempre desconfiado.
Foto de Andre Penner, publicada sem autorização do autor.

Outro Manuel (Manuel igual a Manoel, certo?), um amigo, reage do seguinte jeito ao verso de seu xará: os velhos andam devagar para atrasar o final da vida. Matou a pau. A decadência física é menos importante que a mumunha urdida para atrasar o fim absoluto. Manoel de Barros está velho. Adiou, com seu passo de cágado pantaneiro, o fim de muitos dias — dias que engoliram alguns de seus filhos. E, arrastando seu chinelo pela fazenda, estará, agora, postergando a chegada do “seu dia”. Um palpite, não passa de um palpite isso que acabo de dizer. Desconheço Manoel de Barros, e desconhecê-lo não deixa de ser uma forma íntima de chegar a ele. Quem já o leu sabe que não estou lançando mão de uma frase de efeito. Com o poeta é assim mesmo. 

********************************************************************************
Amigos, saiu uma resenha de meu livro de crônicas (No Osso: Crônicas Selecionadas), escrita por Haron Gamal, na Folha Carioca. Para lê-la basta clicar aqui.
Dia 15 de setembro, a caravana No Osso voa pra BH. Lá, no Letras e Ponto (Rua Aimorés, 388, sl. 501/502, Funcionários), a partir das 11 horas, lanço o livro.

9.8.12

Perversão e verdade


Lendo o artigo de Francisco Goldman (publicado originalmente na revista “The New Yorker” e reproduzido na Piauí de maio), Filhos da guerra suja, duas questões brotaram dele.
A primeira tem a ver com a perversão. Tenho tendência a pensar na perversão como uma questão de foro íntimo. Desvio que acontece na relação entre homem e mulher, adulto e criança, mas, claro, há a perversão comandada pelo Estado, sempre houve, talvez haja sempre. Cito Herodes, que, para liquidar um futuro homem, mandou exterminar todas as crianças de até dois anos de idade. Cito também Hitler, disposto a fazer uma limpeza racial. Perversos ambos. Mas também a ditadura argentina mais recente foi perversa, possivelmente a mais perversa de todas, haja vista que não planejou o extermínio das crianças, mas o sequestro delas. Arrancadas das famílias transgressoras da ordem, seriam educadas num ambiente de pureza ideológica.
O artigo, na realidade, usa essa questão como pano de fundo, pois o que está em jogo é a suposta origem dos filhos adotados da mandatária do Clarín, jornal importante, verdadeiro império da informação nas terras de Maradona e do tango. Depois de idas e vindas, sobre as quais falarei em seguida, a situação atual é que não há evidência de que o casal de jovens adotados pela senhora tenha origem em famílias que contestavam a ditadura. Todavia, não se esgotaram todas as possibilidades de pesquisa.
Foto publicada em El Pais.

Pois bem, as tais idas e vindas lançam luz sobre a questão da verdade. O Clarín é um jornal poderoso, digamos assim. Pertence à tal grande imprensa, essa sobre a qual sempre há suspeita de locupletação com o poder. É uma discussão infindável essa da ligação entre imprensa e poder, foge ao escopo dessa crônica, mas acho que a concorrência (o fato de existirem vários grupos) diminui a chance de uma aliança maliciosa entre essas duas instituições da democracia.
Volto ao caso argentino, baseando-me no artigo do senhor Francisco Goldman. Enquanto o casal Kirchner (no poder desde 2003) manteve boas relações com o grupo Clarín, a questão da adoção irregular dos filhos da proprietária não emergiu, ou não passou de assunto que correu à franja da profusão de fatos ligados ao sequestro de crianças na Argentina. No entanto, quando a presidência e o grupo jornalístico passaram a estar em lados opostos, surgiram as leis que de certa forma obrigaram o uso do DNA para confirmar a origem dos adotados. Os filhos da senhora do Clarín, em nome da lei, sofreram uma série de constrangimentos, que também souberam contornar de forma burlesca. Leiam o artigo, vale a pena.
Enfim, tudo isso para dizer que a verdade é uma construção. A turma lá de cima faz das tripas coração para que o fato em si seja a versão dele. Estamos vivendo, no Brasil, momentos decisivos ligados ao “mensalão”. Claro, há um jogo de interesse tremendo na questão. O episódio, ainda mal contado (pelo menos sem uma versão definitiva), do encontro entre Lula, Gilmar Mendes e Nelson Jobim é apenas uma onda pequena que pode estar anunciando um tsunami. 
Espero uma imprensa comprometida com a verdade. Com a verdade dos fatos. Sem perversão.