30.8.20

Outro tipo de cronista

 Na zoologia dos escribas, há o cronista cansado, que, ao contrário do sem assunto, tem muito a dizer, mas não tem fôlego. Sendo assim, desconversa, cochila entre vírgulas e economiza diálogos.

— Não!

— Sim.

— No duro?

— Da cebola.

E o leitor que se esforce para saber se falavam mal do presidente, do ponta-esquerda do Bangu ou se viajavam de um ácido ingerido no verão de 1968 e que, do nada, bateu de novo. Ele que se levante da cadeira e, pela janela, veja o que acontece na rua e descubra a crônica não escrita, sequer rascunhada.

O cansaço não é como a manga, que tem qualidade, ou como o automóvel, que tem marca. Assim mesmo, é fibroso, pode fundir e, quando baixa no lombo do cronista, faz do pobre coitado um procrastinador contumaz, encurtador de frase e espichador de silêncio. Daí, o cronista cansado, só de pensar, sua e, para não piorar, deita-se de conchinha com o vento do ventilador e conta no máximo até dois para não ficar esgotado.

Sou desse espécime, ainda que tenha de esclarecer que... ah, outro dia me explico. Outro dia, mas não fujo de cumprir a função social do cronista, qual seja, preencher um pouco mais a folha em branco. Saio de mansinho deixando um poema um tanto quanto melancólico.


O peixe e o nada



O que do rio se pesca,
o peixe e o nada,
nada por nada,
nada por nadar.

Cumprindo a vida, o peixe
ocupando espaço, o nada.
Jantamos o peixe
depois de almoçados pelo nada,

com quem vamos deitar.





17.8.20

A luta de Emilinho

Se tem alguma coisa que o irrite é ser chamado de Emilinho, tratamento carinhoso que lhe grudou logo na infância e, deixando de ser carinhoso, continuou até depois de ele se tornar um respeitado jovem senhor. Onde já se viu? Tudo bem que o chamassem assim quando era pequeno, afinal de contas Emílio é praticamente sinônimo de circunspecção, qualidade que não se pode cobrar de uma criança, muito menos de uma espevitada feito ele.

Mas, chegado aos 12 anos, isso deveria ter tido um fim. Não teve no seio da família e, pior, contagiou a roda de amigos. Os que frequentavam sua casa ouviram e levaram para a escola, para o futebol. Ainda calhou de ter outro Emílio, bem mais forte e alto, na mesma sala de aula. Emílio era o forte; ele, Emilinho.

E aos 15? Mudança nenhuma, a coisa tinha criado raiz. Ah, Emilinho, me faz companhia. Pô, Emilinho, deixa de ser fominha, passa essa bola. Só faltou alterarem o nome no registro civil. Emilinho GM. Quanta crueldade.

Aos 18, começou a cobrar a mudança. Ao entrar na faculdade, apresentava-se como Emílio e Emílio ficou sendo até que reencontrou, na cantina, a antiga colega de ginásio, Célia; cursariam, naquele semestre, uma matéria eletiva para ambos. Passaram a ir juntos ao cinema, e um levou o outro para conhecer os amigos e, bem, Emilinho saiu da boca de Célia, entrou pelo ouvido de todos e ecoou na faculdade. Emilinho do Direito, isso, aquele crânio. Pois, diga-se a verdade, Emilinho era mesmo um crânio, estudioso e perspicaz. Só não queria ser esse “inho”, mas era “inho” que ele era.  

No estágio, foi Emilinho de cara, veja se um fedelho daquele seria outra coisa. E, se isso é possível, mais Emilinho ficou sendo à medida que todos reconheciam suas habilidades, seu potencial. Nossa, tão novo e tão capaz, eita, Emilinho. Contentava-se com o fato de, na formalidade dos tratamentos no Fórum, chamarem-no de Emílio GM.

A primeira namorada, que não foi a Célia, mas uma amiga dela, vejam só, Tininha, foi responsável pelo pior momento de todo esse imbróglio. Quando os dois chegavam para o chope ou à porta do cinema ou do clube, os amigos logo diziam que os “inhos” haviam chegado, que poderiam então dar início aos festejos, ou entrar na sala, ou mergulhar na piscina. O namoro não durou muito, e Emilinho se distanciou dos amigos para ser Emílio na vida.

Foi, de fato foi, mas não por muito tempo. Passou a ser chamado de doutor Emílio GM por clientes, juízes e advogados em tribunais, acrescido ainda de um vossa senhoria. Fora dali, Emilinho. Até mesmo a secretária — que, no início, cumpria todas as formalidades dispensadas ao chefe — não resistiu quando passou a ter uma segunda função na vida dele, a de namorada e, depois, de esposa. Primeiro nas saidinhas de final de tarde, depois nos primeiros beijos e nos folguedos com que brindavam os corpos, por fim, no próprio escritório, só o chamava de Emilinho. Às vezes, meu Emilinho, noutras doutor Emilinho. Há de se dizer que, apaixonado como nunca havia sido nem jamais seria, esse Emilinho saído da boca de Maria Adelaide soava diferente, nem lhe feria o brio.

Eis que chegou a paternidade, e era hora de dar um basta naquilo. Ninguém é filho de Emilinho. Bilu, bilu, teteia, minha princesa Odalea, este aqui sou eu, seu papai, Emílio GM. A neném deu aquela babadinha típica dos bebês, apertou o dedo do pai e, no que não foi percebido, piscou com ironia os lindos olhinhos. Aos dois anos, chamava o pai de Linho; aos quatro, de Lilinho; aos 15, de monsieur Milinho. O pai morria pela filha, única, soberana, e só via amor em tudo.

A última de Emílio, façamos seu gosto e o chamemos assim, foi pensar que, se na vida comum a coisa fugira de seu controle, no mundo virtual, relativamente novo, em construção, ele poderia fazer-se Emílio GM como de fato era. Criou perfil em todas as redes com um maiusculíssimo EMÍLIO GM. Inteligente, planejou uma estratégia para aparecer. Nadando numa onda que surgia, fez de seu perfil um destilador de falsas acusações a políticos que insinuavam alguma preocupação social. Eram todos comunistas, ateus, inimigos da família.

Sucesso. Sucesso absoluto. Sucesso tão estonteante que em pouco tempo lá estava ele em manifestações conservadoras, às quais ia sempre com uma camiseta verde e amarela com um imenso EMÍLIO GM no meio do peito. O nome — mais que nome, marca — passou a ser gritado por todos e pintado em camisetas, que apareciam, manifestação a manifestação, aos montes. A glória. Mais que glória, milagre. Antigos amigos do então Emilinho, ao se reencontrarem com esse arauto do conservadorismo, passaram automaticamente a chamá-lo de Emílio. EMÍLIO GM. A glória.

Hoje, ao voltar de uma dessas aglomerações, EMÍLIO GM encontrou um bilhete assinado a quatro mãos, as duas de Maria Adelaide e as duas de Odalea. Nele estava escrito: “Emilinho, não gostamos disso em que você se transformou. Passar bem.” 

1.8.20

Augustinho Sentinela

Augustinho era quase adolescente quando ouviu de um amigo do pai que bom, bom mesmo, era a ditadura, tempo de foco e retidão, quando ninguém ficava se perdendo em devaneio, pensando em coisa ruim, aberto ao pecado.

O rapazola gostou de saber que na ditadura havia foco. Foi um bálsamo para suas angústias — que ele, crendo-se muito criativo e até irônico, tratava como angústias augustinas —, pois não conseguia mais viver sempre questionando tudo, inclusive determinados assuntos delicados. Delicados, sim, pois, de vez em quando, ele olhava os moços da mesma idade e até os mais velhos com um olhar carregado de suspiros. Ah, isso não, não macularia o nome da família. Que viesse a ditadura e arrastasse o mal e o pecado para longe, implorava aos céus.

Nessa época, aproximou-se de Deus, quer dizer, na sua visão, aproximar-se de Deus era primeiro fazer a catequese e depois frequentar com assiduidade a igreja. Ajudava na missa e, fora dela, cuidava para que tudo estivesse certo quando o pastor falasse a seu rebanho. Tornou-se um auxiliar do sacristão, um homem com seus 30 anos de muita energia e olhos pretos e magnéticos. Augustinho teve de combater o diabo na casa do Pai. Pelas barbas do profeta, de todos os profetas, dos apóstolos e santos, amém!

Deus era bom e clemente, mas a ditadura, pensava Augustinho, é que acabaria com os seus tormentos, terrenos todos eles. Assim, começou a pesquisar como poderia seguir a carreira militar, pois os militares é que, tendo implementado a ditadura uma vez, implementariam uma segunda. Quando ela chegasse, Augustinho, que já seria Augustão, estaria entre eles, talvez os liderasse. Abraçar a profissão, no entanto, só depois dos 18 anos; havia uma adolescência inteira pela frente.

Agarrou-se mais e mais às orações, o que não o impediu de cometer uns pequenos pecados no isolamento do banheiro e de espichar olhos para o sacristão, para o Merval, aquele bronco do sexto ano, do sétimo, do oitavo... Apesar disso, chegou aos 18 incólume, Deus misericordioso o conservou assim.

A mãe se derretia pela candura do filho. Nem se tivesse feito promessa, Deus a presentearia tão bem. O pai via no menino sinais de novos tempos, estranhos para ele, estranhos até demais, mas certamente melhores, com homens dedicados à família e menos truculentos. Enfim, tudo soava bem e melhorou ainda mais quando o casto anunciou que, servindo ao exército por conta da idade, depois seguiria carreira. Seria general e promoveria a ditadura. A mãe chorou de doce emoção. O pai aplaudiu e, não contendo a alegria, escarrou pela janela.

O exército não era muito diferente da escola, havia jovens de ambos os sexos, aulas e momentos de recreação. A diferença era o empenho físico cobrado. Augustinho, um menino franzino, aparentemente frágil, se revelou, tomou gosto pelos esportes, se destacou nos treinamentos de campo, tornou-se um atleta.

Se as tentações do pecado não lhe deixavam em paz, descobriu que sua força de vontade era maior. Via-se, no futuro, solteiro. Com mulher não se casaria e com... do resto Deus cuidaria como cuidara até então. Seu projeto de vida era acelerar a chegada da ditadura para livrar outros jovens do sofrimento por que ele passava. O mundo deixaria de produzir Augustinhos, quer dizer, não aflorariam angústias augustinas em mais ninguém.

Mas como se tornar um ditador?

Descobriu que ditador torturava. Estudou todas as torturas possíveis e achou por bem experimentar algumas no próprio corpo. De vez em quando, dava um choque embaixo da unha, ficava de cabeça para baixo dez, quinze minutos. Aprendia na pele o que aplicaria como corretivo aos inimigos e, verdade seja dita, se a intensidade do choque fosse maior ou se fosse amarrado em pau de arara, ele responderia a qualquer pergunta, até as de cunho íntimo, nomeando inclusive o que escondia de si. Nessas horas, a lembrança do amigo do pai surgia do nada só para lhe soprar novamente que bons tempos eram os da ditadura, de foco e retidão.

Augustinho virou sentinela. Muito atento aos arredores do quartel, o futuro ditador, moço inexperiente, deixou desguarnecida a retaguarda, que, sem que fosse convidado, passou a ser visitada pelo temido Capitão Expedito, apelidado em cochichos de caserna por Dito Duro. Os mesmos que apelidaram o capitão passaram a debochar de Augustinho, aquele que teria trocado, na marra, a dita pelo dito, a dura pelo duro.

Augustinho estacionou no posto de soldado raso e, não tardou muito, foi desligado do exército. Quando a mãe soube de tudo e mais um pouco, chorou de uma emoção amarga toda vida. O pai, tomado pela ira, escarrou no chão da sala e proibiu o filho de botar os pés naquela casa.

Sem família, sem Deus — que a seu ver lhe virou as costas — e tendo experimentado, do pecado, apenas a dor, Augustinho vive por aí, anda pelas ruas e planeja com seus botões, e só com eles, tornar-se mais cedo ou mais tarde um ditador.