27.5.15

Rondó da cor mais dúbia

“eu não tinha este coração /que nem se mostra” (Cecília Meireles)



Você acabou de colorir seu livro. Estresse zero num dia lindo de outono. Antes de correr à livraria para comprar um novo, o quinto no mês, você, distraída, adia tomar providências corriqueiras: descongelar a carne do almoço, escrever um bilhete para o filho mais velho, separar aquela roupa que perdeu a hora de ser passada adiante. Um suspiro. A chave na porta. Rua.

Dois moleques espiam um pedestre desatento e com um celular da hora. Um desempregado confabula com a sombra, em quem confia, com quem não compete. Um corno assobia. Uma menina pensa no beijo dado dois segundos antes. O motorista de ônibus para o veículo, salta e entra na padaria para comprar um refrigerante. Em protesto, todas as buzinas do mundo soam em coro, barulho insuficiente para acordar o ciclista morto ou para orientar o velho extraviado.

Indiferente a tudo, você só tem olhos para chegar à livraria e adquirir o livro despalavrado, cheio de formas a espera de cores. O pássaro rosa — uma invenção sua, não se tem notícia de um desses na natureza — volta a sua lembrança, e você quase chora. Criar tem custo, custo emocional. Amarelo aqui, verde ali. Perfeccionista, quando um azul clarinho escapou do espaço a ele destinado, a janela da casa, você pensou em desistir. Mas não, respirou fundo e deu um jeito pintando de marrom escuro, cor de tijolo, a parede na qual havia se metido o azul intrujão. No stress, eis o prêmio.

Entre o livro de figuras ocas e o colorido, deixado sobre a mesa de casa, houve uma dedicação absurda, um deixar o resto de lado, inclusive os filhos, inclusive o marido, inclusive a mãe, inclusive os cabelos e as unhas. Valeu a pena. Tarefa cumprida, você foi tomada pela paúra de perder esse bem-estar, de ter de voltar à rotina carrasqueira. O medo de renunciar às recentes conquistas serve-lhe de guia e estímulo no caminho entre a casa e a livraria. Você avança.

A moto em zigue-zague corta os carros. Um neném desanda a chorar alto, a ponto de sossegar o facho das buzinas. Um mendigo atravessa a rua desviando-se dos carros numa espécie de balé sem beleza, mas eficaz por levá-lo ao outro lado sem um arranhão. Duas velhas pareadas se arrastam pela calçada estreita, feita apenas para quem vai só — ideal para os solitários, com o que se forma uma fila atrás delas. Na fila, muitos talvez estejam indo à livraria com a mesma necessidade. Haverá livros para todos, não há por que temer. Mesmo assim você teme.

De repente, despenca sobre seus ombros o sofrimento do mundo, vivo ali na rua. Os meninos infratores, o velho perdido, as velhas andando em ruas feitas para jovens, apenas para jovens, o ciclista morto e o corno tentando apagar a dor num assobio. As buzinas e a birra do bebê furam-lhe o tímpano. Tudo isso comprime sua alegria, dá uma rasteira em sua tranquilidade e nubla o céu outonal. É preciso fazer alguma coisa. Você tem de fazer alguma coisa.

Na saída da livraria, você entrega o primeiro exemplar ao mendigo, que acabara de cruzar mais uma vez a rua. Ele segura o presente e, em agradecimento, improvisa um pas de deux de araque, com a autoridade de um Baryshnikov sem banho. E come o livro (é o livro que colore a fome e a sede dele). Uma das velhinhas, para receber a gentileza de uma moça tão bonita, passa a bengala para a outra mão, livrando-se do braço da amiga. Gesto miúdo que a leva ao chão. Ali mesmo ela abre a bolsa, tira de lá a caneta azul e começa o trabalho. A fila que se formava atrás das senhoras, já grande, cresce, cresce, vira a primeira esquina, a segunda. O bairro fica congestionado de pedestres, que, por não terem buzinas, gritam e xingam. Você aproveita a fila sem rabo e distribui com presteza os livros. Ao pegar o seu, a mocinha ri, o adolescente desdenha, o senhor de terno guarda o dele na bolsa. A babá daquele chorão dá o exemplar que acabou de ganhar ao menino, que passa a pintá-lo com lágrimas.

Uma, duas, três pessoas, a rua toda e, já fora de seu controle, a cidade inteirinha começam a colorir os livros que, do nada, foram parar em suas mãos. É gente sentada na calçada, na rua, na escada da igreja, no para-choque do ônibus, na mureta, em todo canto. A serenidade se alastra feito fogo e passa o rodo no estresse.

Ao perceber todo mundo “assim calmo, assim triste, assim magro”, com os olhos tão vazios e o lábio amargo, você se toca que a vida não funcionará com as pessoas nessa vibração — que não vibra. Algo de muito trágico está por acontecer. Você pensa em ler um livro para antever o desastre ou pelo menos para descobrir em que espelho ficou perdida a sua face.

18.5.15

Amigos do peito

Um grande amigo, já recolhido ao desconhecido, pioneiro em informática no Brasil, recebeu do governo uma bolsa para estudar em Londres. Grande apreciador de uísque, foi, com uma sede daquelas, para o país que julgava ser o verdadeiro paraíso da bebida. Todavia, vejam que ironia, não lhe caiu bem o escocês. Ao seu paladar, aquilo não era uísque, definitivamente não era. Passou a contrabandear os brasileiros. Alguém ia visitá-lo e levava um Old Eight ou outro brazilian scotch do mesmo quilate. Lá pelas tantas, com dificuldade de importação, meu amigo acabou se acostumando com o mais popular nas terras da Rainha, o Teacher, que, ao voltar ao Brasil, encontrou no mercado, engarrafado por aqui mesmo. Enquanto pôde, bebeu o Teacher. No seu modo de ver, marca condizente com o fato de ele ser professor — uma atitude corporativista.

Feliz do sujeito de ideias próprias, que rema contra a maré. Esse meu amigo era um tipo assim. Falei em felicidade, mas, não sei se é o caso, uma vez que para ser feliz não basta só ter opinião própria. A vida é feita de muito mais coisas: casar, não casar; ter filhos, não ter filhos; ganhar dinheiro, não ganhar dinheiro; etc. e não etc. Além de ideias próprias, uma boa pitada de sorte favorece a felicidade. Já que meu amigo, aqui e ali, teve de segurar alguns touros grandes e ferozes à unha pequena, numa pretensa contabilidade da felicidade (os economistas andam doidos por medi-la), seu débito recebeu lançamentos de valores altos, difíceis de serem abatidos. Apesar de tudo, meu amigo era leve, e sua companhia me fazia um bem danado.


Amigos! Essa crônica se serviria da lembrança de um tão querido para, a partir dela, falar de outro assunto, mas, ao aparecer num instantâneo, esse amigo tomou conta do que escrevo. Ele faria anos por agora, deve ser por isso que sua presença deu rasteira nas urgências que seriam tratadas por esta crônica. Não por esta, por outra, que não vai ser escrita. Saravá, meu avô (como eu o chamava), seu tio (como ele me chamava) preserva sua memória, a memória de um múltiplo artista (xilogravador, desenhista e escritor) com quem convivi e tomei lições das mais nobres.

Uma obra de Escher.


Caí no campo da amizade, sigo nele até o fim. Falo de outro amigo, mas tenho de deixá-los de sobreaviso, uma vez que é dono de uma qualidade perene e inigualável (não há risco no meu prognóstico): morrerá comigo e não me deixará sofrer a dor dos que perdem um verdadeiro irmão, nem a sofrerá ele. É um amigo imaginário. Nossa convivência começou nos meus dois, três anos, como é habitual, no entanto fiz quatro, catorze, vinte e quatro e vou fazer cinquenta e quatro anos sem que Jamil desaparecesse.

Discreto, ele nunca me acompanha no banheiro (nem nos públicos) e, quando algum namoro esquenta, sai do recinto na hora certa. Para poder me explicar, lê livros que não seriam os seus escolhidos. Assobia para me tirar de algum silêncio casmurro. Reza quando eu peco. Dirige quando cochilo ao volante.

Perfeito? Não, longe disso. Jamil, ao contrário do outro amigo que ilustra esta crônica, nunca me contou uma história que fosse dele, só dele, mesmo que embalada em algum delírio.

4.5.15

As quatro estações em torno do amor

Minha primeira trombada amorosa me custou uma borracha, com a qual apaguei o nome da namorada de minha agenda de endereços. A segunda, com contorno adulto, me fez tomar um porre homérico e curtir, ouvindo “Ronda”, de Paulo Vanzolini, num rádio de pilha na zona boêmia, a famosa — e até então desconhecida — dor de cotovelo. Na terceira, chutei o pau da barraca e caí, quase de imediato, nos braços de outra mulher, que me salvou, mas não para sempre. O amor é clichê, desde o início, regado a flores, declarações absurdas e outras traquitanas, até o fim. O amor sempre acaba.

Acaba e não acaba, pois, na verdade, o amor evapora para em seguida chover no mesmo terreno ou, quando carregado por nuvens, pesadas ou não, num outro mais adiante, quiçá longe, muito longe. Intempestivo, contra o fígado o amor cultiva pinimba e mantém total controle sobre nossos braços, pés e aquilo que a evolução social soube por bem denominar de nossas vergonhas. O amor é foda e aprende apenas as lições tomadas das pernas bambas e do sentido roto. Sua sabedoria é uma árvore que brota do nada. Vive o amor de primaveras reincidentes.


Foto do autor, na região serrana do Rio Grande do Sul.


Cabem aos amantes o outono, a perda das folhas e, ainda, o suspiro gratuito e solitário no alarido das ruas — revelação do golpe baixo cujas dores resistiram à fuga para as drogas e o sexo eventual. Ao murmúrio do prazer — parte inseparável do prazer — segue-se o seu outro, desgozo de um abandono, tristeza que não alcança o ouvido do amor, voltado para dentro e indiferente à luz. Autofágico o amor medonho.

No quarto tombo, já entendia o vaivém amoroso. Nem por isso deixei de sofrer os horrores de sempre, em segundas de abstenções e terças e quintas e finais de semana de excesso e ressaca. Em seus trajes de vento, o amor suspende nossas cobertas e, não satisfeito, arromba janelas, dando-nos, assim, o inverno que não vive. Por sermos condescendentes, há certo conforto no enfrentamento desse frio.

Todo o resto — o amor abrange também suas fronteiras e o que está fora delas — é um verão que sobe pelas nossas pernas e que, no meu quinto tropeço amoroso, tornou-me corado e bem disposto. Voluptuoso. Sem vergonha. Calejado inocente, mais uma vez beijei o chão. A flor da primavera amorosa é um tapa na cara do amante.