28.4.11

A cidade cá dentro

Eu estava na casa dos Piassi arrastado por minhas irmãs e primas. Era menino, não tinha 15 anos.
Na roda que se formou, o violão pulava das mãos do Thales para as do Ita, das dele para as do Serginho do Dulce. Do Serginho, o violão passava para o João Eudes e, por fim, ficava com o Paulinho. Que sortudo fui! Viva eu, viva tudo, viva o Chico Barrigudo.
Cantavam canções românticas italianas, coisa do Thales. Em seguida, cantavam o que de melhor se fazia no Brasil. Em plena década de 1970, as composições tinham um pé na política e na contestação. Houve uma vez que Paulinho (o violão mais talentoso de todos, disso não resta dúvida) cantou a provavelmente censurada “Mordaça”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro. (Em 2001, Fátima Guedes e Eduardo Gudin gravaram a música no álbum “Luzes da mesma luz”; da Dabliú Discos.) Nosso Paulinho morreu sem saber: na sala de sua casa, ele deu ao menino que nasceu e cresceu no Beco dos Aflitos as primeiras lições de estética.

Nosso poeta Barreto tem uma frase boa de usar aqui: “Sou o que sou porque vocês me o foram.” De fato, tornamo-nos isso ou aquilo por contingência. Um molecote começa a formar sua identidade estética e política, assim, por acaso.
 A minha escola, portanto, foram as rodas de música, nas quais eu só fazia escutar, pois, menino, pouco seria ouvido. O silêncio, vai saber, era meu parceiro e me ensinava, na moita, a escrever. Ou não ensinava a escrever coisa nenhuma, mas aguçava o meu desejo de traduzi-lo aos outros (o silêncio é uma língua). Só hoje, um pouco calejado, posso aventar essa hipótese.
Calejado! Estou naquela fase da vida em que me apego ao que já tenho. Novidades deixam-me um pouco atrapalhado. Parece que a isso chamam velhice. Não sei, mas deve ser, um dia ela chega. Ou melhor: é bom que chegue, caso contrário teremos passado muito brevemente nesse mistério que é a vida. Paulinho passou. Quero mais; ele também queria.
Há um perigo em apegar-se ao conhecido: tornar-me nostálgico. Fechar os olhos para o aqui e agora, mais ainda para o daqui a pouco e depois, e ficar na rabeira daquele velho e bom tempo que não volta mais; ê, lasqueira! Isso, sim, seria uma prisão — domiciliar, pela qual se pagaria a comida. Não, não falo em imobilidade, afirmo e firmo a base, o chão. Esqueço a nostalgia. Até aconselho uma nova cantora: Tulipa Ruiz. Um clique no Youtube e ela estará ao alcance de seus olhos e de seus ouvidos.
Ficar preso ao passado não seria honesto comigo nem com aqueles mestres desavisados, os tais que ensinavam como efeito colateral, não por obrigação catedrática. Falo da rapaziada da viola. Acrescento alguns professores, cujo tiro saiu pela culatra. A lição que guardo de gente como o Zé Leite, o Reinaldo Barbosa ou o Marcão não tem nada a ver com história, inglês e ciências, disciplinas que respectivamente ministravam no Polivalente. Foram meus mestres e me deram algumas dicas de como fugir do perigo. Às vezes, fujo cantando um bom repertório, ainda que desafinado.
Não me apresento apenas para anunciar minha velhice ou soprar as cinzas do Paulinho. Venho afirmar que Passos, despretensiosa, me deu régua e compasso para eu traçar minhas linhas nada retas, sem paralelos e, muitas, invisíveis por aí, por aqui, onde estou e aonde vou. Leio e pretendo escrever o mundo a partir da cidade que está dentro de mim. 


13.4.11

Com que eu eu vou?

Até recentemente éramos alegres e tristes, amados e odiados, risonhos e trombudos no espaço que estivesse ao alcance de nossos braços e de nossas mãos. Uma invenção como o avião criou a possibilidade de num sopro irmos de um lado ao outro, mas nossa atuação continuou presa ao espaço físico que ocupávamos. O telefone, antes do avião, criou a conexão à distância, mas tímida (por muito tempo, cara), limitada a dois atores, um em cada ponta. Na verdade, o telefone não passa de um instrumento para marcar encontro.
A internet — evoluindo do correio eletrônico aos bate-papos e além — muda isso. De certa forma, nossa presença virtual é um ensaio de um desejo humano antigo: a onipresença.
Nesse mundo, as redes sociais, como têm sido conhecidos o twitter, o orkut e o facebook, as mais populares, são um capítulo à parte. Recentemente, nesses terremotos de insatisfação que pegaram de cuequinha arriada e penico na mão os ditadores da Líbia (osso duro de roer), do Egito e de outros países, elas viraram peça de resistência política. Bastam-nos os dedos, esses subservientes criados de nossa mente, e de uma boa legião de amigos ou seguidores para mexer com o mundo. O resto, como sempre, é o poder de persuasão, a habilidade de convencer primeiro uns e depois outros e mais outros e outros, numa progressão infinita que promove a reunião de uma multidão na Praça Tahrir.

Essas redes, se podem ser úteis para derrubar ditadores ou badalar artistas, são também espaços festivos. Sim, festivos. Somos, muitas vezes, um monte de crianças estreando seus brinquedos novos. Há os que vivem administrando fazendas virtuais e outros que passam o tempo todo respondendo perguntas a respeito de seus amigos. Aliás, o termo amigo é forte para ser empregado nas redes, talvez o utilizado no twitter, seguidor, seja mais correto.
Para se ter exemplo da festa, dia desses, um publicitário de BH (Aroeira) postou algo assim: se o facebook fosse no Irã, seria faceburka. Uma brincadeira de menino. Em menos de 30 minutos, gente de vários lugares, eu inclusive, dava contribuição com outras ideias: se fosse de um amante de Bergman: facetofacebook; já se fosse cerveja escura facebock; ou, ainda, seria facebroca nas mãos de dentistas; de Wilson Sideral, fácilbook; de um cara falso fakebook; e, para terminar com poucos exemplos: faithbook para os religiosos.
Para muita gente, as redes sociais ferem de morte a individualidade. Sempre há o risco de nossos dados correrem de um cadastro para outro e virarem-se contra nós, e, como seduções comerciais, encherem nossa paciência e a memória de nossos computadores. No fundo, o que as empresas querem é conhecer o consumidor na sua intimidade. E o risco é exatamente esse: você ali achando que brinca ou planeja revoluções e os grandes conglomerados vasculhando seu jeitinho de ser.
Não sei se o medo dos que reclamam da agressão à individualidade tem a ver com essa enormidade dos interesses econômicos, são mais rasteiros: o problema é o vizinho descobrir o segredo do requentado que inebria a todos na hora da janta. Dentro de uma rede social, é possível usar algumas configurações de segurança mais ou menos confiáveis, nem todos sabem disso. Enfim, o medo não é de todo descabido, mas muitos são mesmo descuidados.
As redes sociais não substituem os locais de convívio, onde o velho olho no olho continua comandando a praça, inclusive a Tahrir. Ou, deixando a metáfora de lado, twitter, orkut e facebook são espaços para o eu-coletivo (o que brinca, o que promove revoluções, o que informa), o eu-eu mesmo precisa de amigos para tomar chope, para compartilhar alegrias e tristezas, precisa de amores para acalmar a fúria do corpo, para reproduzir-se ou mesmo para deixar-se ficar em sua companhia sereno, pleno, esquecendo-se de tudo o mais.