29.9.11

Uma viagem sob o sol, outra sob a lua


Depois de dias de muita chuva, vieram outros de plena estiagem. O calor voltou a pino, e a estrada levantava poeira à toa. Uma poeira fina, é verdade, mas, como eu suava, a camada de pó grudava na pele sem piedade. Meu cabelo ia pouco a pouco ficando nojento, duro. Quando voltasse para casa, mesmo tendo passado dias fora e tendo tomado regularmente o banho, minha mãe, sempre ambígua, murmuraria: — Nossa!
Lá ia eu pensando na volta mal a jardineira apontava para a subida que desemboca no seu Tuca. A estrada da Julieira terá uns 40 quilômetros de cabo a rabo, não sei, e não cortáramos mais do que um décimo de toda a distância, muito pouco até mesmo para o meu destino e o de meu padrinho, a Fazenda do Gordurinha, a 20 quilômetros de Passos. Pensava na volta porque sempre pensamos na volta — como uma espécie de lembrança de segurança, que não nos deixa perder do mundo e pelo mundo. Mas eu tinha, meu Deus, alguma coisa entre oito e dez anos e nenhuma noção de que somos cheios de escapes, subterfúgios. Eu pensava na volta e daí a pouco não pensava mais — só isso. Sonhava então com pomar, com bica de água fria, com a aventura de ter de ir cagar no mato. Planejava andar no Segredo, cavalo grande e manso. E tinha certeza de que meu padrinho, ali do meu lado, batendo seus dedos no apoio de braço do banco, olhando tudo e todos, me deixaria fazer aquilo que me desse na veneta: comer pão de queijo antes do almoço, não almoçar, chupar a fruta que estivesse no galho mais alto da árvore.
Jardineira fashion. Foto própria.
Dentro do ônibus, eu viajava no espaço, rumo à fazenda. E, de pensamento em pensamento, roçava distraído o beco inominável. Insisto: tendo aqueles oito, dez anos, não podia imaginar que existisse, dentro da gente, um oco, buraco negro que engole nossas brandas certezas.
Tendo passado outros dez anos, ia eu de novo dentro de um ônibus velho. Agora a estrada, embora poeirenta, era outra, e a distância, maior. Cruzava a Bolívia, desde Santa Cruz de La Sierra até Cochabamba e de Cochabamba até nem sei onde e de aí, por fim, até La Paz. Meu padrinho não ia comigo, dessa vez minha companhia era o Carlos, amigo chileno que cometeria o desplante de morrer com pouco mais de 40 anos. Apesar de meus 20 anos de então e de viver sempre um pouco bêbado e de mascar as folhas de coca que me ofereciam e de ter deixado um amor no Brasil e de estar lendo com indomada fúria (Cem anos de solidão – Gabriel Garcia Marques, Editora Record) e de ter medo do desconhecido que estava por vir e de ouvir música em um toca-fitas que era uma verdadeira geringonça; apesar de tudo, já tocara com as próprias mãos aquele oco imponderável. Aprendera que ele é feito de pau e luz, de ferro e brasa, de barro e sombra.
Uma jardineira na Guatemala. Foto própria.
Os motoristas desses ônibus são gente muito qualificada. O menino que tinha o cabelo cortado a mando da dona França (nuca quadrada) via, com encantamento, o homem que vinha muito sério lá na frente de repente subir na capota da jardineira e ir direto e reto na mala da senhora que desceria ali nos Meireles.
O universitário em férias sentia frio quando, no meio da madrugada, o motorista viu-se obrigado a parar o ônibus, que rateava havia algum tempo. Tendo pegado uma lanterna muito mixuruca e enchido a mão de ferramentas, ele desceu à estrada, esticou um forro de papelão no chão frio, deitou-se sob o chassi e começou a fuçar para ajeitar aquilo e poder dar prosseguimento à viagem. Havia crianças espalhadas pelo corredor do carro; Carlos dormia, tombado pelo excesso de chicha; o velho ao meu lado, meu fornecedor de folhas de coca que me caíam bem pra diabo, tinha uma única preocupação: manter viva a galinha sob sua jaqueta esfarrapada. 
Foi na noite boliviana, onde brinca o sono dos lhamas, que escrevi, sem lápis e sem papel, um livro esquecido logo depois.


(Esta crônica foi publicada, aqui mesmo, em 10/09/2005, sob o título de Dentro das Viagens.)

23.9.11

A casa do Beco dos Aflitos

Por volta de 1955, chegando a Passos, depois de viverem o início da vida de casados no Rio de Janeiro, meus pais compraram o sobrado no qual eu só entraria tempos depois, quando tinha meus cinco anos. Explico: de fato, logo após a aquisição, eles foram morar no seu novo ninho, mas dele se mudaram, não tardou muito, por um capricho de minha mãe. Segundo soube, a inquilina da casa de baixo era tão ranheta que mamãe preferiu deixar a própria casa e pagar aluguel em outra. Assim, nasci no endereço alugado, na Rua do Ouro, perto do doutor Breno, do Quinca Meu Genro, do Antônio Soares e do dentista Joaquim Getúlio — destruidor das bolas que craques ou pernas de pau faziam cair em sua propriedade. 
Não posso me esquecer de listar entre os vizinhos a família do Cícero Parenti, mais conhecido por Caolho ou, para ser rigoroso, Caôio, pai do Cunha. Pois o Cunha foi um menino levado da breca. Uma das travessuras do meu futuro amigo foi a de soltar o freio do caminhão de seu tio Tatão Lemos, pondo-o em disparada Rua do Ouro abaixo. Não fosse o muque da parede do quarto onde eu dormia, feita de matéria bruta e bom cimento, eu poderia ter partido desta pra melhor.
Conto isso para mostrar que, quando passei a morar no sobrado do Beco dos Aflitos, eu já era um sobrevivente. E acrescento: na mudança, com preguiça de fazer a pé o curto trajeto entre a morada nova e a velha, pulei na rabeira da carroça, meio usado à época para o transporte da mobília, e, pumba, levei um tombo. Meus pés ficaram presos a um estribo pendurado na traseira da carroça, e, com isso, fui arrastado pelos paralelepípedos, como, no passado, no chão de terra com cascalho, arrastavam-se os inconfidentes. Enfim, quem subiu as escadas e cruzou o batente da porta da nossa propriedade era um menino que havia resistido a um ataque e a um acidente que o deixara bastante esfolado.
A nova casa, aos poucos, tratou de curar meus traumas, fazendo questão de me ensinar que a vida não era tão ruim como minha experiência até então indicava. De fato, não sofri mais atentados, e as esfoladelas, aquelas e outras, foram sempre bem curadas com arnica ou mercurocromo ou merthiolate. (Soube-se depois que este antisséptico não passava de uma trapaça da indústria farmacêutica, o que não o impediu de curar minhas feridas.)
Fecho a tese: a casa do Beco dos Aflitos me transformou no que sou. Tudo começou quando fiz de uma das mangueiras — a da manga Carlota, trazida de outras terras por meu avô materno e sem igual na cidade — meu pouso de garoto em busca de privacidade. Passava a novela Meu pé de laranja lima, baseada no romance de José Mauro de Vasconcellos, e aprendi com seu personagem a dialogar com arbustos e outros vegetais. Hoje, depois de ter tido um breve romance com uma bananeira, falo abobrinhas apenas com repolhos e manjericões; logo, não posso me dizer íntimo nem dos nobres nem dos vassalos do reino vegetal. De toda forma, bom brasileiro, bato no peito e declaro-me amicíssimo do rei.
(Ah, como me perco!)
Tentava dizer e agora digo: no sobrado, descobri o encanto da solidão. Quando me meto comigo mesmo, invento, desinvento, acalento-me e, não raro, esqueço-me da vida cachorra, sempre pronta para, lá fora de mim, abocanhar meus calcanhares. Não me tenham como um retraído empedernido, pois não alimento casmurrice. A casa me enfeitiçou de outro modo com sua mania de festa, tornando-me sociável, às vezes até engraçado, pronto aos amigos.
Sejamos honestos, uma casa é feita de seus tijolos, de suas árvores, de suas cores, de seu telhado com goteiras — e do balde embaixo retendo as gotas da água mais pura, xixi de Deus —, mas também e, principalmente, é feita de sua gente. Na casa do Beco, essa gente começava por Joaquim e Haydée, meus pais. Passava pela Célia, minha segunda mãe. Ampliava-se com Dita, Sá Tereza, Sá Inês, Ana Germana e Nilzinha. Crescia mais um pouco com a visita dos tios Lozo, Goy, Vera, Expedita, Yole e Elin, e de muitos primos, em particular a Viveca e a Boinha, que passavam as férias na casa. Abria-se à presença constante da Celina, do Zé Luís, da tia Lurdinha, do Marquinho e dos vizinhos chegados. Embriagava-se dos jovens, que gostavam de rodear minha mãe. Alguma gente latia: o Zorro, o Tilo e o Nicolau. Outra, por viver no meio desse povaréu, aprendia com ele: eu e meus irmãos, Salazar, Teresa Cristina e Patrícia. Os sinais que recebemos foram positivos, com o que, na outra volta do relógio, otimistas e na comunhão com nossos maridos e esposas, povoamos sem exagero o sobrado com filhos.
A casa não existe mais. Minto: está lá; talvez permaneça como é hoje, não sei. Só deixou de ser nossa. Entregamos ao novo dono as chaves, mas não se abandona esquecida no silêncio das paredes uma história. Vendemos uma casa pela metade, conquanto o comprador tenha adquirido uma inteira.
Apartado agora do sobrado, ando na contramão do tempo até me ver de novo com as marcas de antigos arranhões, que ardem como nunca. Em vez de procurar livrar-me da dor, dou de ombro, ao mesmo tempo que sou tomado por uma sapituca de cantar; de cantarolar para ser exato. Hum, humhumhumhum, humhum, hum, humhumhumhum... Villa-Lobos, sim, Villa-Lobos. A arnica para curar os dodóis da minha alma é Villa-Lobos. E, quando ouço sua 5ª Bachiana, sou reposto na mangueira das mangas Carlota, onde sou amigo do rei, ainda que não o seja.





7.9.11

Caricaturas


Ponho os pés na calçada de Ipanema e, lá do Leblon, vem o homem que já foi bonito. Na realidade, ele não perdeu a beleza, mas, depois de longo debate com seus botões e travesseiros, concluiu que a beleza foi coisa de antigamente. Da juventude, de quando pegava geral. É um senhor bonito e, se ainda se entrega à conquista, continua pegando geral, mas não mais as garotinhas. Isso é que o incomoda e que, à própria vista, o torna feio.
O alemão passa com uma de nossas negras. Nem é a mais bonita, mas, para ele, basta que seja negra. Conjecturo: o mundo ficará melhor à medida que arianos se acasalarem e procriarem com negros. Um passo a mais, deparo-me com a francesinha de mão dada com um de nossos negros. Rogo para que sejam histórias de amor — ou uma aventura apenas — e não turismo sexual.
Jovens hoje são espertos e preparam-se desde cedo para a velhice. Ao colocar nos ouvidos um som bem alto e travar conversa, aos berros, com o colega do lado, aprendem a conviver com a surdez. Dizem que, precavidos, tomam Viagra.
A mulher fala ao celular. Ao terminar a conversa — em atitude correta, pois não há motivo para manter as mãos ocupadas —, enfia a engenhoca na bolsa. Entretanto, feito isso, ela se espanta, se contorce, tenta se esconder. Sem o celular agarrado à mão, passou a se sentir nua, embora, claro, não esteja. Outra pede que o parceiro ligue para o celular dela, é o único jeito de encontrá-lo na sua maldita bolsa. Rápido, ela diz, estou à beira de um ataque. Não estamos mais falando de um simples aparelho de comunicação, compreende?
O casal não se suporta, quarenta anos de um casamento terrível. Mas toda manhã caminha na praia. Conversam muito.
Um ex-prefeito passa de mãos dadas com a esposa. Estão bem velhinhos. Ele, agora, é escritor e, pelo jeito, enquanto caminha, maquina um conto.
Ainda existem as bichas exaltadas, vendendo alegria. E também a menina que passeia com o amigo gay, o único cara que realmente a entende. Porém amizades desse tipo vêm sumindo do mapa da afetividade. Os gays andam em crise com as mulheres, com o jeito de ser delas. É uma hipótese caricatural.
Dez horas da manhã, e é possível encontrar, nos quiosques, pessoas que são restos da noite anterior. Uma delas, o cara com calça arregaçada e sem camisa, com olhos vermelhos e consciência limpa... Por enquanto.
Ando ao lado de um sujeito que nada desse mundo tira-lhe a gravata. Com bermuda, camiseta e tênis, ele caminha com passo firme na companhia de um amigo. Conta toda sua semana, os negócios que fechou, os que vai fechar. A gravata está pendurada no córtex do seu cérebro. Talvez ele nem saiba que, à esquerda, quando se vai para o Leblon, e, à direita, quando se vem, vaivém o mar.
Passa a mãe, desesperada porque a babá pediu-lhe que segurasse a criança por dois minutinhos, o tempo de amarrar o tênis. É a primeira vez que mãe e filho se tocam desde a cesariana asséptica feita num hospital com cara de hotel. (Não, não é verdade que o pimpolho beire os 35 anos. Maldade!)
Tem uma turma que joga futevôlei bem demais. Há partidas de homens contra homens, de mulheres contra mulheres e de times mistos. Nestes, é cada mulher forte, benza deus, Deus, DEus, DEUs e DEUS.
A tatuagem deixa ver um pedacinho da pele original da garota que, com certeza, era linda na sua versão sem tinta. Noutra jovem, a tatuagem, discreta, faz assim na minha cara: slapt, slapt, vê se aprende. Aprendi: quando bem-feitas, as tatoos têm lá seu borogodó.
Certas pessoas foram engolidas por seus óculos, inclusive a guria de nove anos, se tanto.
Um economista famoso, que as más línguas dizem ter ficado rico com a herança do sogro, passeia muito mal vestido. Quer dizer, não mal vestido, mas as meias sintéticas quase alcançam os seus joelhos. Provavelmente viveu nos Estados Unidos da América.
Paulo Caruso por ele mesmo
(http://vilamundo.org.br/2011/03/paulo-caruso-uma -trajetoria-de-vida-desenhada-pela-vila/)


Quem sou eu? Um mineirinho na praia, prato cheio para todo tipo de ironia: rabiscada, gargalhada, escrita, cochichada ou só pensada. Além de tudo, metido a besta, crente que abafa com essa caricatura de crônica. Se eu ainda fosse o Paulo Caruso. Ah!, se fosse ele, economizaria esse montão de palavras, trocando-as por dois traços assim e assado. E estava dito.





Agradeço ao Paulo Caruso por permitir ilustrar minha crônica com suas autocaricaturas.