20.4.24

Encontro #1

Uma frase assalta Drummond: “eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça”. Não é novato, publicou livros, sabe bem que o que lhe bate à porta é um poema. Apruma o corpo e espera os versos descerem para bicar o alpiste que espalha sobre a mesa de trabalho. Não há nada de inspiração, comprou a semente e inventou a árvore agora ocupada por pássaros famintos. Viver atento o transformou em poeta. Os versos pousam aos poucos. Drummond alimenta os mais feios e, em seguida, com um peteleco, espanta-os, manda-os de volta ao ninho. Noutra oportunidade – quem sabe ainda naquela manhã? –, é provável que os chame outra vez, pois, de repente, não serão tão feios assim. Seja como for, de longe assiste ao alvoroço faminto daquele monte de palavras, algumas já conectadas a outras, pássaros siameses. “Todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos”. Tudo que recolhe guarda no bolso do paletó, um temporário alçapão de linho. A tarefa pode demorar – poeta de fibra, faz ginástica diária, está pronto para pequenas maratonas –, mas, se as inexistentes musas resolvem resguardá-lo para embates futuros, a escrita acontece num par de segundos. Pronto de vez, não, é apenas uma versão provisória, a ser revista amanhã ou depois, a primeira de umas tantas.

O final, já em verso, é um sopro a ser lançado contra furacões: “Eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”. Feliz com o resultado, até mesmo excitado, o poeta, de novo menino, quer logo mostrar o feito aos amigos, à mãe, à mulher, ao porteiro do prédio, a Deus. Se faz ou deixa de fazer, depende muito do grau dessa pequena loucura. É de se esperar que, experiente, guarde os versos na gaveta e, um pouco febril, enfie-se na água fria, entorne duas doses de uísque ou, ávido por espiar o mundo que sua canção poderá tornar um pouco melhor, se debruce na janela.

Um dia o poema passa a circular. Uma mulher chora ao lê-lo. Tomado pela inveja, um poeta não sabe se beija Drummond e agradece ou se afasta-se daquele que acaba de jogá-lo na sarjeta da qual nunca se levantará. Certo é que o poema acaba lido por um carioca, adotado por Minas, com Minas no próprio nome, Milton Nascimento.

A mãe de Bituca, Maria do Carmo, foi levada pela tuberculose quando ele não tinha nem dois anos. A dona da pensão na qual ela trabalhava acolheu o menino como filho, um querido filho. Adotado por uma família, adotado por um Estado, Milton deve ter se visto naquela canção em que as mães todas, biológicas ou não, de sangue ou de terra, se reconhecerão. Ele tomará de Drummond aquelas palavras para cantá-las e levá-las a lugares aonde o poema talvez não chegue. Compõe então uma melodia. Grava a melodia. Em “Canção amiga”, não canta, como dizia Elis Regina, com a voz de Deus, sua voz é uma deusa, cuja bíblia são as palavras de Drummond.

Depois da audição protocolar, na qual, diante do cantor tão tímido quanto ele, segurou a emoção, Drummond faz outra, longe de todo o mundo, ele e o vinil. O menino toma o desejo do velho poeta e o faz ligar para Vinícius de Moraes, acostumado ao mundo musical, a quem se confessa comovido como o diabo do diabo. Ou não, o entorpecimento o leva à rua, onde gasta a sola do sapato no calçadão de Copacabana. Não tem coragem de assobiar, na realidade não sabe reproduzir a melodia. Não pode cantar aquela música ou qualquer outra, sua voz soaria como montanhas dinamitadas pelo capital, embora num tom agudo, de uma ave disposta a silenciar o céu. Chuta de leve uma lata de cerveja ou xinga em pensamento um cachorro de rua. Volta à casa e, antes de se deitar no quarto de hóspede, pede a Dolores para não ser incomodado. Agitado, vira-se e revira-se na cama. Enebriado pela vaidade, está feliz. Não é vaidade. Ou é. O que importa? Está feliz. Acomoda-se assim de lado, fecha os olhos e, numa velocidade jamais a ser alcançada ao rascunhar um mísero poemeto, dorme o sono do mundo.

7.4.24

Problemas alheios

 

Na Tailândia – especificamente na província de Lop Buri –, macacos, lá protegidos por lei, têm promovido verdadeiras guerras entre gangues. Não são raros ataques a humanos, mas a coisa fica feia mesmo durante o enfrentamento de um grupo contra o outro. O conflito não ocorre na mata, habitat dos animais, mas no centro urbano. Ou seja, você está lá no seu carro, ou pior, parado na calçada, esperando a chance de atravessar a rua, quando de repente uma horda de primatas cruza à sua frente para brigar com a outra que está bem às suas costas. Não conheço a realidade da Tailândia, portanto não posso afirmar se esse é o maior problema deles. Me arrisco a dizer que não, um país nada mais é do que um saco de problemas.

Apesar do inusitado dessa guerra nos moldes antigos, no tapa e na coragem, sem armas – alguns bichos confeccionam ferramentas para auxiliá-los em suas ações básicas, mas não sei de nenhum que produza armas –, os tailandeses deveriam agradecer pelo fato de suas ruas não serem tomadas pela polícia carioca, especializada em soltar tiros a esmo contra bandidos – verdadeiros ou inventados – nas ruas da cidade, para dizer a verdade, nas ruas em torno das favelas, principalmente em seus becos. Nem pela “nova” polícia paulista. Enquanto os macacos disputavam território, o governador de São Paulo, importado do Rio de Janeiro e com as palavras a seguir, encaminhava o pessoal dos direitos humanos à ONU ou à Liga da Justiça, ao raio que o parta, porque ele não estava nem aí com as críticas à truculência de seus comandados nas periferias. Ainda agora essa polícia matou Edneia, uma jovem de pouco mais de trinta anos, cabeleireira, com seis filhos para criar. A imprensa fala em mais um caso de bala perdida. É insuficiente a explicação, quando não cínica.

Os finlandeses são felizes, os mais felizes do mundo, constata uma pesquisa tradicional. Eu já estive lá e conheço seus dias cinzentos e frios, mesmo fora do inverno. Duvido um pouco dessa felicidade, mas não muito. Como assim? Acompanhe a historinha: num habitual dia sombrio, eu cruzava uma praça de Helsinque e, de repente, o sol se abriu. Uma mulher que ia logo adiante de mim se sentou num banco, tirou a blusa, o sutiã e ficou tomando sua carga de vitamina D. Isso, sim, me cheira a felicidade, ao miúdo da felicidade, mas quantas vezes no ano poderão se dar a esse luxo?

Igualmente não sei se o único problema da Finlândia é o frio. Sei um pouco, na verdade. O alcoolismo é uma questão sensível por lá. Quando estive no país, tinha em mente um dos episódios de “Uma noite sobre a terra” (Night on Earth), de Jim Jarmusch. O filme reúne cinco histórias, cada uma delas se passa em uma cidade, Nova York, Roma, Londres, Los Angeles e Helsinque, e os personagens estão sempre em um táxi. Pela lente do diretor americano, as ruas de Helsinque estão cheias de bêbados, o que constatei em minha visita. Se é certo que as cidades finlandesas jamais serão atacadas por macacos – podem ser por ursos e, às vezes, são – nem pela polícia vingativa e falsamente punitiva brasileira, eles têm, bem ao lado, a Rússia e sua discordância ameaçadora sobre a intenção da Finlândia de entrar para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o que veio a acontecer no ano passado. Uma bala perdida do poderio russo pode extinguir a felicidade e os bêbados da felicidade.

Minha expedição sem sair de casa à Tailândia ou à Finlândia se faz sem bússolas, até sem a orientação das estrelas. Penso na briga de macacos ou na felicidade “medida” pela estatística um pouco para não pensar, por exemplo, nas guerras entre Rússia e Ucrânia ou entre Israel e o Hamas, esta um banho de sangue cruel, comandado por um extremista de direita sem nenhuma visão além da vingança. Ah, senhor da guerra, leia “Judas”, de seu compatriota Amós Oz. Ou simplesmente leia (desconfio da absoluta falta de leitura dessa gente).

Dizem que a grama do vizinho é mais verde, mas a desgraça alheia maltrata mais do que a nossa. Penso assim? Ora sim, ora não. Vagueio, leitora, vagueio, leitor, e, com as mãos no bolso e andando de lado, chuto pedrinhas.

25.3.24

Visita ao Rio Grande do Sul

 

Voltei ao Rio Grande do Sul depois de alguns anos. Porto Alegre é uma cidade agradável, na qual, por conta do trabalho e da literatura (trabalho sem remuneração), coleciono amizades, inclusive recentes. Bia, a quem fui apresentado pela Ione – gaúcha e carioca que se conheceram no Pará –, faz parte da nova leva, mas já chegou esbanjando carinho e generosidade, parece até que nos conhecemos não é de hoje – nem de ontem.

A capital gaúcha vem renovando a área portuária, planejando inclusive erguer prédios residenciais, o que me parece uma tendência. No Rio de Janeiro acontece a mesma coisa, e não é muito diferente o que se fez em Buenos Aires e Montevidéu. No caso de Porto Alegre, já há um espaço, ao lado do Gasômetro (em reforma, no momento), cheio de bares com pontos de observação do pôr do sol. Jaqueline afirma que é o mais lindo do mundo, assim como são sem igual o vinho e o churrasco da terrinha. O carioca defenderá o pôr do sol do Arpoador, o argentino achará um acinte esse destaque dado ao churrasco. Enfim, nossas paixões nos comandam.

Talvez por eu ser mineiro, Luciano e Júlio riram de mim quando, numa parada entre Bento Gonçalves e Porto Alegre, pedi um café, um pão de queijo e, vá lá, uma cuca. Cuca, especialidade gaúcha, tem o mesmo nome de um bolo muito comum no Rio de Janeiro, mas eles não se parecem em nada. Ambos são bons, assim como era bom o tal pão de queijo comido a caminho de volta da serra – bom, mas não o melhor, lugar incontestável da iguaria feita em Minas Gerais. Aproveitando a oportunidade, a globalização do pão de queijo mineiro deve ser estudada, parece um case de sucesso.

Meus amigos gaúchos me indicaram com entusiasmo uma visita à livraria Bamboletras. Lá encontrei livros do Rubem e do Tiago – meus colegas da Rubem e com quem tomei um chopinho de leve –, além de pelo menos um da Mariana, outra da revista. Me senti bem na companhia livresca dos três. E melhor ainda ao saber que aquela livraria ocupou uma antiga igreja. Nada contra as igrejas – quer dizer, as autênticas, não as que servem de disfarce a bancos –, mas, acostumado a ver cinemas transformados em templos, essa insurgência – fato único nesse Brasil desgostoso da cultura – merece aplausos.

O trabalho me levou, vejam só, a Santa Cruz do Sul, uma cidade da qual eu nunca ouvira falar até um pouco antes dessa minha viagem, quando de lá veio à tona a censura ao “O avesso da pele”, livro de Jefferson Tenório, um escritor negro, carioca e com vida acadêmica no Rio Grande do Sul. Uma diretora de escola pública da cidade e logo depois seus iguais em escolas paranaense e goiana viram na história de Tenório uma ameaça à juventude. Os livros estão sempre na mira dos conservadores. Daqui a pouco, a pira queimará uma pilha deles, pois depois do caso Jefferson a censura continuou excitada: o Sesc tem censurado o romance do paraense Airton Souza, “O outono de carne estranha”, vencedor, vejam só a ironia, de seu último concurso literário. Ah, os livros!

Santa Cruz do Sul é uma cidade bonita, tem um igreja gótica impressionante e sua rua central é toda arborizada, um exemplo urbano. Eu e os colegas de trabalho chegamos lá à tarde e corremos para ver a igreja aberta. Íamos comentando como a cidade parecia segura quando à nossa frente nos deparamos com dois ou três carros de polícia. Custamos a entender o que se passava. Eles atendiam à denúncia do conselho tutelar de que havia uma criança sozinha na rua, não sei se mendigando. Pelo que entendi, a cidade está atenta a possíveis abandonos. Pode ser bom, ainda que, na minha avaliação leiga, as viaturas policiais são um exagero e parecem indicar que o que se tem não é zelo pela infância, mas controle sobre ela.

Dormi lá. De manhã, um monte de gente se dirigia à praça. Fiquei encafifado pelo fato de todos carregarem uma “cadeirinha de praia” (há uma grande empresa produtora na cidade). Depois percebi que havia um palanque e julguei que fariam uma assembleia – uma estranha assembleia na qual os militantes ficariam sentados. Desejei que fosse o movimento de professores contra a colega censora. Uma senhora me esclareceu que os funcionários públicos exigiam melhores salários. Agradeci a informação, dei meu apoio à causa, mas saí de lá torcendo para que a tal diretora e perseguidora da literatura não levasse o dinheirinho a mais. Ela não merece. Quanto a mim, mereci degustar um churrasco na cidade, uma coisa dos deuses.

Ao deixar Porto Alegre, peguei um Uber dirigido por um rapaz jovem, que se mudou de Uruguaiana para a capital e ganha a vida como motorista. A conversa fluiu e, por sorte, encontrei um crítico de toda essa direita enlouquecida que ainda atua no país. Em seu perfil no aplicativo, ele diz gostar de filosofia, literatura e música. Imagino estar se sustentando desse modo, mas de olho numa outra vida. Desejo-lhe sorte. No voo, a mulher sentada ao meu lado – não sei se gaúcha, mineira, carioca ou extraterrestre –, leu a viagem toda. Título do livro: “A coragem de ser imperfeito” – na sinopse disponível na internet, está escrito: “aceite a sua vulnerabilidade e ouse ser grande”. Ah, os livros!

10.3.24

Maria Escolástica

 às crianças da Palestina


Dos filmes que têm circulado, inclusive candidatos ao Oscar, “Dias perfeitos”, de Wim Wenders, com o incrível ator japonês Köji Yakusho, foi o que me tocou mais profundamente. O enredo do diretor alemão e de Takuma Takasaki se passa no Japão, com atores japoneses, equipe japonesa e falado em japonês. É quase mudo, além de ser de poucos movimentos, ao contrário do que eram as fitas de Charles Chaplin ou Buster Keaton. A música é uma personagem, a voz do silencioso Hirayama, o limpador de banheiro público em Tóquio. Tenho assistido a algumas produções ótimas, como “Pobres criaturas”, “Anatomia de uma queda”, ou a não tão ótima “Saltburn”, e o de Wenders se diferencia delas por nos convidar a buscar um cantinho, tirar os sapatos e tomar um café no mundo interior. Os outros, ruidosos na sua maioria, são de embates, de personagens que se afirmam quando lutam contra um lá fora hostil. Hirayama não quer nada disso, ainda que não seja nem tolo nem alienado. Aos poucos, temos algumas pistas de sua vida e podemos levantar hipóteses sobre por que está ali, levando aquela vida simples, rotineira, sem grandes contrariedades.

Toda noite, Hirayama sonha imagens meio tremidas, cheias de sombras. Todos os dias, fotografa as sombras formadas por uma imensa árvore (a questão das sombras se explica, desde que o espectador espere o final dos créditos). E a esse respeito, houve uma coincidência. Um ou dois dias antes de ir ao cinema, acompanhei a live “A fim de poesia” que a poeta Noélia Ribeiro faz, desde o início da pandemia, no Instagram. Na temporada mais recente, ela mudou a dinâmica. Agora, em vez de convidar poetas e promover um sarau no qual eles leem seus poemas, ela e Fátima Ribeiro escolhem poesias e as leem. Naquela ocasião, Fátima leu um poema do meu “O sol pelo basculante” (editora Urutau), que reproduzo a seguir.

 

O homem íntegro

                                                                        a Eustáquio Grilo

 

Não sou desses homens que têm dois lados

o A em contraposição ao B

o beco às terças, a avenida aos domingos

o comezinho de costas para o incomum

a alma contra o corpo.

 

Mesmo assim ou por isso mesmo

amo desconfiado

trabalho desconfiado

vivo desconfiado

— há, na integridade, uma sombra.

 

Tenho, como todos,

peito e dorso

bunda e coco

ombro e sexo

joelho e calcanhar.

 

Dentro e fora, o único rosto

em feriados e dias úteis, um só esforço

na mesma bica, o sedento e o saciado.

 

Tomo como certa a hora de

cortar o cabelo. E como medo

inconfesso que me aparem a sombra.

 

 

Meu poema – aqui não há uma questão de valor ou coisa similar – faz fronteira com “Dias perfeitos”. Não é uma afirmação narcísica, mas a percepção de pontos de diálogos. Hirayama se encaixa bem no homem íntegro do poema.

Seja como for, e seja lá o que isso tudo é, Wenders berra a favor da simplicidade – em entrevista, ele disse: “Dias perfeitos é o mais próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz” – e me remete a uma vida que já tive: a de jovem do interior de Minas. Lá viveu minha prima Maria Escolástica. Era sobrinha de meu pai, mas não diferiam muito em idade. Dona de uma casa movimentada – aos filhos e, depois, noras, genros e netos, agregavam-se sobrinhos, primos, vizinhos –, ela tinha uma máxima recorrente: tudo é bobagem.

Hirayama, ao dar acolhimento à sobrinha que foge da casa dos pais, leva-a para ver o rio, e ela lhe pergunta se o rio vai dar no mar. Sim. Ela pede para irem até lá. Ele responde que da próxima vez irão. A menina indaga quando é a próxima vez. E ele: a próxima vez é a próxima vez. Ela insiste. Ele mantém a resposta frouxa e acrescenta, agora é agora. Ambos saem pedalando e improvisando uma melodia para “a próxima vez é a próxima vez, agora é agora”. Uma cena linda, num filme de muitas cenas lindas. Bem, mas eles poderiam sair cantando “tudo é bobagem”. Minha saudosa prima Maria Escolástica está na gênese do filme de Wenders.


25.2.24

O perrengue da comunicação

 


Quando eu disser a vocês o que tenho a dizer, vocês me dirão – É isso o que tem a nos dizer? E eu direi – O que vocês queriam que eu dissesse?

Eu disse, ela disse — Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela disse – Você não se cansa?

A mãe perguntou ao filho se estava entendido. Ele disse que sim, só não entendeu exatamente o que deveria ser entendido. A mãe então concluiu – Ok, estamos entendidos.

Ele me pediu um minuto. Pegou um papel, fez um desenho. Era uma cena chocante, um monstro engolia uma pessoa pela cabeça. Eu ainda me perdia nos detalhes da gravura, e ele já me perguntava se, vendo e não ouvindo, tudo se esclarecera. Eu respondi – Bem, o desenho tem problema de perspectiva.

Quando ela começava a se despir, ele disse – Espera. Ela ficou estática. Ele não disse mais nada. Ela continua lá.

Do nada, ela diz – As árvores trocam mensagens umas com as outras. Eu pergunto – E daí? Ela responde – Daí que o desentendimento é maior do que imaginamos.

Ouvir, ouvi, mas ouvir é pouco.

O palestrante perguntou – Alguém? Eu levantei o dedo. Ele nem deixou eu me ajeitar direito na cadeira – E então? Eu respondi – Concordo. Ele se surpreendeu – Com o quê? Escandi as palavras – Com o que o senhor não disse.

O prefeito mudou o nome da rua. Todas as cartas endereçadas a ela foram parar numa rua homônima em outra cidade. As pessoas que as receberam abriram, leram e responderam uma a uma. Assim, aceitaram o convite para um date, o pedido de perdão, mas, num caso, o falso destinatário reclamou – Alguma coisa deve estar errada, o aluguel está em dia, o IPTU é que ainda não deu pra pagar. Não parou aí – E não me chamo Raimundo, Perivaldo é meu nome.

A professora pediu a atenção de todos – De todos. Começou então a falar de forma automática o discurso de começo de ano. Os alunos se distraíram em surdina. Quer dizer, Luisinha não, ela estava tão atenta que caiu no choro quando a professora disse que não eram dela aquelas palavras.

Discreto é o suspiro, no entanto é sempre bem entendido.

Tiramos a palavra na sorte. Fiquei pensando o que fazer com a minha. Enfim, decidi ficar calado, com o olhar de quem acompanha um voo de pernilongo.

Na voz miúda, dizem que a guerra foi perdida quando o comandante ordenou que atirasse a primeira pedra aquele que não sofreu por amor.

Bateu à porta da casa da namorada. Nada. Bateu de novo. Nada. Mais uma vez. Nada. A namorada, ao lado, não sabia o que fazer.

Ela deu um sonoro não ao pedido de casamento. O rapaz, assustado, mas célere, buscou uma saída – Esquece o casamento, vamos tomar um sorvete. Ela respondeu – Uma coisa dessas só faço depois de casada. E completou – Você tem uma bicicleta?

Depois de ler o jornal de cabo a rabo, a garota levantou-se e foi à cozinha. Lá encontrou a cozinheira. Elas se olharam, se olharam e mais uma vez se olharam. A garota saiu de lá certa de que o jornal jamais olharia para ela e a cozinheira. Jornal gosta é de distâncias.

Esse negócio de beijar na boca de olhos fechados tem deixado muita gente a ver navios.

Achou muita graça ter ganhado o prêmio de quem menos entendia piadas.

Escrevi muitos livros, compus músicas mil, pintei quadros a valer, pena que sempre estivesse dormindo.

Com a casa vazia, o rapaz anunciou – De agora em diante, falarei o que me der na telha. Gotejou então duas ou três ideias que as paredes, caso tivessem ouvido, o teriam tampado.

Eu queria dizer a vocês, mas vocês não me entenderiam. Então não digo. Será que vocês me entendem?


10.2.24

Um falcão de volta ao céu


Lá na rede social,

passa boi, passa boiada

às vezes a gente acredita,

noutras, pensa, “é marmelada” 


Nos primórdios do mundo virtual, o e-mail parecia uma coisa mágica, mas, com a chegada das redes sociais, um tempo depois, ele passou a quase nada. Estávamos diante de uma inovação que mudaria de vez – para pior e para melhor – nossas vidas.

As coisas ruins só fazem crescer: excesso de propaganda, suspeita constante de vazamento de nossos dados, ditadura do algoritmo, vista grossa dos donos das poderosas redes aos descalabros que circulam livremente por elas, verdadeira bomba capaz de destruir os alicerces da vida social em harmonia, a própria democracia. Tudo isso num ambiente – como outros tantos no capitalismo tão pouco concorrencial – de alta concentração: quatro ou cinco redes nos prendem a todos.

Dorrit Harazim, jornalista que dá gosto de ler, em recente coluna falava sobre as possíveis cem mil vítimas palestinas (não há contagem, apenas inferência) na guerra entre Israel e Palestina. (Não vou comentar esse conflito, que, a meu ver, está longe de ser uma simples resposta de Israel a um ataque terrorista.) Na conclusão de seu artigo, Harazim cita uma carta de John Steinbeck a Pascal Covici escrita no início da Segunda Guerra. Depois de o autor de        “As Vinhas da Ira” afirmar que a espécie humana não aprende as lições que toma (“a experiência de 10 mil anos não deixou qualquer marca sobre os instintos do milhão de anos anteriores”), ele conclui: “Não digo que o mal vence – jamais vencerá –, digo apenas que ele não morre...”. Essa percepção cabe bem para ilustrar o perigo que ronda as redes sociais.

Sejamos justos: existem as coisas boas. Já pensou a pandemia sem as lives, sem a consulta médica ou a terapia à distância? Melhor nem pensar ou pensar que, além disso, essas redes ainda permitem que façamos amigos a léguas de nossa casa e que reencontremos alguns deixados pelo caminho. No filme “Vidas passadas” (da sul-coreana Celine Song), por exemplo, dois amigos, namoradinhos na passagem da infância para a adolescência, conseguem, graças a uma rede social, se reencontrar doze anos depois de a menina, Na Young, ter se mudado para o Canadá. É um filme bonito, introspectivo – e que toca com delicadeza a questão da imigração –, no qual o mundo virtual só está ali de forma coadjuvante como deveria ser.

Nas redes, arredio como sou a grandes embates, quando não estou divulgando meus textos ou fazendo chacota da vida, me distraio com receitas culinárias ou macetes para disfarçar uma fenda na parede ou dar vida a plantas moribundas. Logo eu que quase não cozinho, não cuido de plantas e não tenho o menor pendor para pintar paredes, consertar ferro elétrico, enfim, para lidar com afazeres tão domésticos. Diante de minha confissão, não estranharia se me censurassem pelo tempo gasto com inutilidades e vissem em meu entretenimento um tico de tristeza doentia, uma queda pela escuridão. Se é assim, diante do breu e obediente a Thiago de Mello, eu canto.

Além desses vídeos sem-noção, curto outros simples, que – se não saíram da cabeça de uma Inteligência Artificial, hipótese a não ser descartada –, me enchem de esperança. São delicados os que mostram um urso panda brincando na neve e a dificuldade de uma elefanta ou de uma onça para atravessarem seus filhotes numa rodovia – tem sempre um que volta. Um vídeo me toca em particular: três pessoas, cientistas, imagino, chegam ao topo de uma montanha e tiram de uma caixa uma ave enorme, um falcão, se não estou enganado. Esse animal fica andando de um lado para o outro, estudando a paisagem, reconhecendo a casa, decidindo o melhor momento de voltar ao seu habitat. Ele vai para cá, vai para lá, vai e volta de novo até tomar coragem e despencar no céu. Vibro pela ave de voo tão seguro, mas igualmente pela atitude daquelas três pessoas cujos rostos não são mostrados. Elas devem ter resgatado o animal fragilizado e o levado a um centro de tratamento, onde ele foi recuperado. Aos poucos, treinaram a ave, a estimularam em voos controlados e, depois de muita observação, concluíram que era o momento de devolvê-la à liberdade.


29.1.24

Janeiro visto de um cesto de gávea

Nos devaneios a que me entrego vez ou outra e quase sempre, concluo, por exemplo, que não deveríamos nos assustar com a inteligência artificial, haja vista que a literatura é o resultado de uma certa IA. Assim como faz a máquina, para escrever um poeminha, é preciso ler outros tantos, misturar uns com outros, respeitar ou não a métrica, à moda de uns, as formas clássicas, à moda de outros. Um erudito talvez leia mil livros, a IA, alguns milhões, senão todos. No entanto, o primeiro vai ao banheiro, a segunda não. Nosso diferencial – e nossa vantagem – portanto, meus amigos, está no fato de irmos ao banheiro. O dia em que a máquina pedir um tempinho para fazer xixi, adeus humanidade.

Há algo de muito errado com nossos figurinistas, pelo menos os de novela. Em Paraíso Tropical – novela de 2007 que se passa no Rio de Janeiro, tendo Copacabana como o centro do mundo –, é sempre verão. Há o núcleo dos que jogam futevôlei e o dos jovens que frequentam a praia após as aulas. Há as meninas de programa em roupa minúscula fazendo ponto ao longo da orla. Enfim, é como é essa cidade-inferno. No folhetim, todavia, fora da praia, os homens se agasalham – de terno, no escritório, de casaquinho desses que as mães aconselham os filhos e as filhas a levarem caso o tempo mude, nos outros ambientes –, enquanto as mulheres não ou quase nunca não. Uma amiga lançou a ideia de que as mulheres com menos roupa obedeceriam ao velho machismo. Pode ser, mas eu vejo como um problema de verossimilhança (ou marketing da indústria do vestuário). Numa mesma cena, os homens – que já estiveram em marte – estão no inverno, e as mulheres – que transitaram por vênus –, no verão. Acordai, figurinistas.

Quando cheguei à Folha Seca, livraria no centro do Rio que completou no dia 20 de janeiro vinte e seis anos, encontrei seu dono, o Digão, carregando cadeira, ajeitando o piano e as caixas de som. Para quem não sabe: no dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade, a Folha Seca promove uma festa de rua maravilhosa. Grandes músicos vão para lá e dão altas canjas. A vedete é um piano de cauda, que vai passando de mão em mão. A gente ouve em sequência chorinho, samba-jazz, bossa nova e o velho e bom samba. Pois bem, encontrei o Digão pegando no pesado e comentei que o havia conhecido quando ele era livreiro da Dazibao. Dei-lhe uma espetada: livreiro, não, um repositor de livro. Ele então me disse que aqueles eram tempos bons, agora, dono do negócio, carregava cargas mais pesadas. Dito isso, foi levar cadeiras para a turma do samba. A vida de um empreendedor cultural não é fácil.

A passagem de dezembro para janeiro foi, em termos de saúde, um pouco complicada. Nada sério, só aquelas chatices que surpreendem nosso corpo dando-nos um alerta de nossa mortalidade (será que devo almejar a Academia de Letras?). Primeiro foi um evento – realmente não sei como me referir a isso – de herpes-zoster. Apareceu no olho direito. Dei sorte, não tive dor, o que parece raro nesses casos. No primeiro dia útil do ano, fui ao escritório, o que só faço de quando em quando, pois trabalho à distância. No ônibus, um senhor caiu. Me levantei para ajudá-lo: me agachei, dei-lhe a mão, ele se apoiou em mim e se levantou. Quem por pouco não se levantou fui eu. Enquanto o ajudava, uma pinçada na coluna quase me nocauteou. Um anti-inflamatório e uns analgésicos aliviaram a crise nos dias seguintes. A Solange, que trabalhou em casa por trinta anos, quando soube do caso e de sua consequência lombar, me mandou um conselho: “Ó, vencida a barreira dos sessenta anos, ao presenciar um acidente assim, o máximo que devemos fazer é exclamar: Ah, coitado!”

Li mais devagar neste janeiro à beira dos sessenta graus. De todo jeito, coisas boas. Algumas estão aí à disposição dos leitores (“A casa da mãe dos homens”,  Telha, de Ione Mattos, e “As filhas moravam com ele”, Caos e Letras, de André Giusti), outras têm de ser garimpadas em sebos (“A língua da serpente”, Lê, de Jeter Neves) e, por último, um inédito. Sobre este não anuncio o título nem o autor, mas aguço a curiosidade de vocês: é um livro que, numa escrita leve e sem pompas, não parece muito diferente, mas é.

Estar num cesto de gávea pressupõe estar num barco à vela, a caminho de uma Índia qualquer, encarregado de avistar terra logo adiante. Não estou em barco nenhum. A imagem serve para dizer que estou sobre as águas da cidade submersa pela chuva. Sob os desígnios do deus marítimo e menino, o El Niño, com o auxílio luxuoso de anos de crescimento urbano desordenado e incompetência misturada com má-fé (ou pior) do poder público, as águas sobem pelas ruas e derrubam as casas dos morros. A chuva não tem piedade de ninguém, ou, um pouco a Caetano e Gil e sendo mais exato, ninguém, não, dos que são “quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres”.

15.1.24

A música alimenta

Comecei a gostar de música quando era miúdo de tudo, criado num ambiente em que não era raro ter cantoria, com sanfona e violão. Nascido no interior de Minas Gerais, a música caipira – que, para diferenciar da sertaneja atual, ganhou o sobrenome raiz – sobressaía às demais, ainda que, numa casa de irmãos mais velhos e antenados, eu ouvisse desde os primeiros passos de um Chico Buarque até os garotos de Liverpool que disputavam a fama com Jesus Cristo. Depois, na adolescência das décadas seguintes, para desespero de mamãe, o Pink Floyd e mais tarde o Queen fizeram pouso e escândalo na nossa casinha no Beco dos Aflitos. Ao contrário de muitos amigos, não deixei de lado a MPB, e Milton Nascimento tratou de abrir a porta de um mundo amplo e diverso.

Foi um movimento natural querer ser um compositor de música e letra. Por sorte, nada do que fiz permaneceu, ainda que eu me lembre de trechos como: “você que faz minha cabeça vem comigo pr’eu não parar” (parceria com meu primo Paulinho de Araçatuba); “Conrado, hoje jornal fechado, ilusão de tê-lo sempre ao meu lado”; “Luz e companhia, um fósforo aceso na madeira podre do coração azul”. Sabe-se lá por quais motivos guardamos coisas assim e esquecemos nomes, senhas, o caminho de casa em dia de porre homérico, mas isso não importa, o que vale é que a música me ajudaria a escrever meus contos (não guardei o primeiro, mas sei do que tratava: um funcionário da Petrobras via uma sujeira no chão da sala de sua casa e refletia sobre ela), poemas e crônicas. Esse estímulo seria intensificado quando, um pouco depois, cheguei, como ouvinte, à música instrumental: um pouco de chorinho, de violão e piano brasileiros, depois jazz e umas investidas na música clássica.

Se eu, escritor principiante, não tivesse nenhuma ideia, me sentava diante do computador, ligava uma música sem palavras e, não demorava muito, surgia ali na tela uma frase e logo depois outras tantas que vinham em companhia ou socorro da primeira. Bem diferente de hoje: se começo a escutar música no meio da noite, batata: vou ficar no fone até duas, três da matina, sem fazer nada além daquilo. Nada? Ora nada, a música é uma amante sem corpo que liga todas as máquinas de minhas fantasias, sem me dar o alento do gozo final. Vou querer (e poder) sempre mais. O problema será encontrar forças no dia seguinte. Por isso, tenho preferido manter a audição como uma atividade diurna, a melhor companhia nas caminhadas feitas nessa paisagem chamada Rio de Janeiro. Mas não é a mesma coisa. Na caminhada, a música é apenas uma presença discreta, um, como diria Marisa Monte, barulhinho bom. O fato é que a música já não me faz escrever – até mesmo atrapalha –, mas não consigo considerá-la apenas um entretenimento. Vou contar uma historinha que ilustra bem isso.

Dia desses, eu fazia uma coisa rara: ver vídeos no Youtube. Assistia distraído à playlist do Duo Metafonia, mais ouvindo do que vendo. Batucava os dedos, balançava o corpo, mas aos poucos a voz, as melodias, os instrumentos, os arranjos e as letras foram pedindo uma atenção mais aguda. Como bom mineiro, me perguntei que trem bonito era aquele.

Que trem bonito é aquele? Já bem atento, fui me respondendo: é o trem que trafega na tradição nobre da nossa cultura, de músicos que, compondo agora, estão sendo parceiros de Chiquinha Gonzaga ou de Sueli Costa, de Caymmi ou de Roberto Mendes, de Noel Rosa ou de Aldir Blanc. O Duo Metafonia (@metafonia.duo, no Instagram) fala com a tradição, a rearranja e, como os grandes, joga para o futuro uma versão modificada dessa tradição. Enfim, produzem um som sem firula e sem mesmice.

Nora Fortunato – poeta e violoncelista da Orquestra Petrobras Sinfônica – e Walter Ribeiro – músico popular e cria da Bahia – fazem música para criança (no Spotify, Cirandaê) e para adulto. Assim como Vinícius e sua “A Arca de Noé”, o duo vê na criança uma inteligência a ser respeitada e provocada. Quando se volta aos adultos, alcança aquele ponto em que a música é simples, mas não simplória, é sofisticada, mas não excludente. Nora e Walter compõem e escrevem caprichados arranjos. Além disso, transformam uma história do João Paulo Vaz em música para criança e revelam o Nuno Rau como um letrista tão bom quanto o poeta que é.

Estaria diante de um duo bom de ouvir não fosse o caso de a Nora e o Walter terem-se tornado meus amigos, um desses que convidam a sua casa e servem cerveja, que bebo sem moderação. Servem também um bonito estrogonofe, que eu, saciado pelo violão e pela voz do Walter e pelo contracanto do violoncelo da Nora, me privo de comer.