10.2.24

Um falcão de volta ao céu


Lá na rede social,

passa boi, passa boiada

às vezes a gente acredita,

noutras, pensa, “é marmelada” 


Nos primórdios do mundo virtual, o e-mail parecia uma coisa mágica, mas, com a chegada das redes sociais, um tempo depois, ele passou a quase nada. Estávamos diante de uma inovação que mudaria de vez – para pior e para melhor – nossas vidas.

As coisas ruins só fazem crescer: excesso de propaganda, suspeita constante de vazamento de nossos dados, ditadura do algoritmo, vista grossa dos donos das poderosas redes aos descalabros que circulam livremente por elas, verdadeira bomba capaz de destruir os alicerces da vida social em harmonia, a própria democracia. Tudo isso num ambiente – como outros tantos no capitalismo tão pouco concorrencial – de alta concentração: quatro ou cinco redes nos prendem a todos.

Dorrit Harazim, jornalista que dá gosto de ler, em recente coluna falava sobre as possíveis cem mil vítimas palestinas (não há contagem, apenas inferência) na guerra entre Israel e Palestina. (Não vou comentar esse conflito, que, a meu ver, está longe de ser uma simples resposta de Israel a um ataque terrorista.) Na conclusão de seu artigo, Harazim cita uma carta de John Steinbeck a Pascal Covici escrita no início da Segunda Guerra. Depois de o autor de        “As Vinhas da Ira” afirmar que a espécie humana não aprende as lições que toma (“a experiência de 10 mil anos não deixou qualquer marca sobre os instintos do milhão de anos anteriores”), ele conclui: “Não digo que o mal vence – jamais vencerá –, digo apenas que ele não morre...”. Essa percepção cabe bem para ilustrar o perigo que ronda as redes sociais.

Sejamos justos: existem as coisas boas. Já pensou a pandemia sem as lives, sem a consulta médica ou a terapia à distância? Melhor nem pensar ou pensar que, além disso, essas redes ainda permitem que façamos amigos a léguas de nossa casa e que reencontremos alguns deixados pelo caminho. No filme “Vidas passadas” (da sul-coreana Celine Song), por exemplo, dois amigos, namoradinhos na passagem da infância para a adolescência, conseguem, graças a uma rede social, se reencontrar doze anos depois de a menina, Na Young, ter se mudado para o Canadá. É um filme bonito, introspectivo – e que toca com delicadeza a questão da imigração –, no qual o mundo virtual só está ali de forma coadjuvante como deveria ser.

Nas redes, arredio como sou a grandes embates, quando não estou divulgando meus textos ou fazendo chacota da vida, me distraio com receitas culinárias ou macetes para disfarçar uma fenda na parede ou dar vida a plantas moribundas. Logo eu que quase não cozinho, não cuido de plantas e não tenho o menor pendor para pintar paredes, consertar ferro elétrico, enfim, para lidar com afazeres tão domésticos. Diante de minha confissão, não estranharia se me censurassem pelo tempo gasto com inutilidades e vissem em meu entretenimento um tico de tristeza doentia, uma queda pela escuridão. Se é assim, diante do breu e obediente a Thiago de Mello, eu canto.

Além desses vídeos sem-noção, curto outros simples, que – se não saíram da cabeça de uma Inteligência Artificial, hipótese a não ser descartada –, me enchem de esperança. São delicados os que mostram um urso panda brincando na neve e a dificuldade de uma elefanta ou de uma onça para atravessarem seus filhotes numa rodovia – tem sempre um que volta. Um vídeo me toca em particular: três pessoas, cientistas, imagino, chegam ao topo de uma montanha e tiram de uma caixa uma ave enorme, um falcão, se não estou enganado. Esse animal fica andando de um lado para o outro, estudando a paisagem, reconhecendo a casa, decidindo o melhor momento de voltar ao seu habitat. Ele vai para cá, vai para lá, vai e volta de novo até tomar coragem e despencar no céu. Vibro pela ave de voo tão seguro, mas igualmente pela atitude daquelas três pessoas cujos rostos não são mostrados. Elas devem ter resgatado o animal fragilizado e o levado a um centro de tratamento, onde ele foi recuperado. Aos poucos, treinaram a ave, a estimularam em voos controlados e, depois de muita observação, concluíram que era o momento de devolvê-la à liberdade.


Um comentário:

Afonso Guerra-Baião disse...

Liberdade, liberdade!