29.3.21

Janelas


Uma voz que parece sair de meus sonhos me diz: escreva sobre janelas.

Ao fugir do castigo da casa baixa onde imagino ter nascido, descobri que as janelas podem ser um caminho para a liberdade. Alguns anos depois, num sobrado no Beco dos Aflitos, olhava a rua pela janela e ouvia minha mãe dizer para eu não me debruçar. Minha mãe tinha medo, e eu, anseio de ver o mundo. Feito essas namoradeiras esculpidas em madeira, eu esperava a Elaine, no seu uniforme de secundarista, passar a caminho de sua casa. Aquela janela me deu a dimensão de que a moça, por ser uns cinco anos mais velha que eu, era inalcançável, e o correr da vida, estivessem meus cotovelos apoiados numa janela ou num balcão de botequim, completaria a lição: muitas mulheres são inalcançáveis. Em compensação, ao pular a janela da sede do diretório acadêmico, despertei o interesse de uma garota por mim — nos alcançamos.  

Quando as janelas se fecham, os passarinhos, longe de nosso olhar de gaiola, voam plenos de liberdade.

Recém-chegado ao Rio de Janeiro, do nono andar de um prédio em frente ao consulado português, em Botafogo, eu observava a fúria dos que, presos no engarrafamento, voltavam para casa após o trabalho. Naquela época, ano de 1980, os motoristas não poupavam a buzina. Alguma coisa houve de lá para cá e, hoje, buzina-se menos, assim como se fuma menos — as janelas são o paraíso dos fumantes. No caso do cigarro, a proibição de fumar em ambientes públicos e fechados, auxiliada por uma competente campanha publicitária, explica a queda no número de fumantes, mas em relação à buzina não houve nada parecido. Talvez seja uma compreensão espontânea do mal que a poluição sonora faz. Sociologias à parte, lá da janela do nono andar, e, depois de uma mudança, da equivalente do décimo segundo andar do mesmo prédio, o recém-chegado descobria que, para viver no mundo escolhido, deveria descer à rua, tomar o ônibus, sentar-se, caso desse azar, ao lado de um fumante, enfrentar o engarrafamento e ouvir as buzinas soarem bem ao lado. As janelas estimulam a reflexão e nos chamam à vida.

Para muitos, elas não são a tela de cinema por meio da qual, além da imagem e do som, se transmite o cheiro; ao contrário, apresentam-se como passagem entre um andar alto e o chão, entre a vida e a morte. Não se culpam as janelas nem as moradias tornadas verticais para comportar tanta gente em espaços exíguos. Cúmplice dos arranha-céus, o salto obedece a comandos de uma alma ferida. As janelas não julgam.

A evolução humana se deu única e exclusivamente para tornar possível a construção de janelas e teve, como consequência inesperada, a invenção, agora esquecida, da serenata. A arquitetura moderna, com seus prédios de vidro, engana-se ao imaginar que nos contentamos tão somente em ver o lá fora. Nada disso, queremos janelas.

Minha avó paterna ficou cega por conta de uma enfermidade que hoje algumas gotas diárias de colírio e uma cirurgia curariam. Para ela, a janela era fonte de brisa, mas poderia ser de vento e chuva, logo, havia sempre alguém zelando para que prazer e frescor não se transformassem em tormento. Se, como Da Vinci afirmou, “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”, que espécie de janela é o olho decorativo dos cegos? É este paradoxo que João Jardim e Walter Carvalho, no documentário não sem motivo chamado de “Janela da alma”, lançam ao colherem depoimento de dezenove artistas (de José Saramago a Hanna Schygulla, de Hermeto Pascoal a Agnès Varda) com problemas que vão de limitações medianas de visão à cegueira, como é o caso do fotógrafo Evgen Bavcar. Chego a um momento delicado, e, sem saber esclarecer o paradoxo, afirmo apenas que as janelas são uma metáfora de fragilidade e potência.

Morei numa pequena vila, e a janela principal, bela peça de uma construção do início do século XX, me dava aos olhos a similar do vizinho da frente. Às vezes eu e ele, olho no olho e uma ruazinha no meio, travávamos ótimas conversas. Do mesmo lugar, soltando a voz, anunciava a hora da tarefa escolar ou da refeição e tirava as crianças do pique-pega.

Falam da existência de janelas capazes de aproximar o nosso mundo de uma quinta dimensão. Não duvido disso, porém, nem em viagens induzidas por néctares vulgares, que me trouxeram aos olhos o que não havia, entrevi qualquer pedacinho do que imagino ser a mais bela visão. As janelas descortinam a quimera.

Manter as janelas abertas é princípio básico de saúde e está em evidência por conta desse maldito vírus assassino. Além de muita gente viver em moradias sem janelas, no Brasil elas foram fechadas, estão fechadas — sim, as janelas estão fechadas. Nem por isso os pássaros têm usufruído de sua máxima liberdade. Por solidariedade a nós? Não creio, devem estar estupefatos por ver a mão visível e incerimoniosa fechar as janelas, à luz do dia, sem que nós façamos nada para detê-la.

13.3.21

O jumento e a vacina

Há uns dez dias, um pequeno avião do governo da Bahia foi decolar de um aeroporto em Salvador e atropelou um jumento. Nem o animal nem o piloto se machucaram seriamente, mas o avião sofreu avarias e sua função, transportar doses da vacina contra a Covid-19 para o interior do estado, teve de ser executada por outro.

Nada mais metafórico do Brasil de hoje: o símbolo da estultícia, o pobre jumento — não sei por que razão ganhou a fama de pouco inteligente, ignorante, incapaz, mas vou aceitá-la sem crítica —, de um lado, e o da sabedoria e diligência humanas, a vacina, de outro. Aquele retarda o voo deste, ou seja, o acidente revela a encruzilhada civilizatória em que estamos. A imagem de um abismo logo adiante não serve mais ao Brasil, pois já demos o passo adicional e agora voamos em queda. Ainda que demore, pousaremos não exatamente no território da morte, mas no Tártaro, lá onde os deuses gregos supliciavam incorrigíveis como Sísifo. Repetir diariamente tarefas pesadas e inúteis é o que nos espera.

Relacionar o atual governo à irracionalidade do jumento (ou do gado) pode nos confortar, mas, ao fazê-lo, deixamos de reconhecer a inteligência dos senhores no poder. Pois eles têm inteligência, grande até; perversa, de fato. São conluiados com a morte. Se depois das grandes guerras, um ideal de civilidade e respeito às diferenças parece ter se transformado em um valor universal e desejável — ainda que pesem todas as atrocidades e guerras praticadas depois —, sempre houve aqueles que, por uma razão ou outra, continuaram a entender que governar é matar. Inventam inimigos em países vizinhos ou distantes, senão no próprio, onde passam a perseguir os que incomodam pela ancestralidade (os índios), pela potência (os negros), pela luta por independência e igualdade (as mulheres), pela subversão dos valores tradicionais (a comunidade LGBTQIA+) ou pela inconformidade (os artistas).

Quem nos comanda atualmente cultiva uma mentalidade mórbida como a descrita. A morte de quase trezentas mil pessoas (número aproximado de habitantes de Petrópolis, a nonagésima cidade, em termos de população, do Brasil, que conta com 5570 municípios), numa pandemia, não aflige os que militam na necropolítica, decerto os contenta. Queimar florestas é um espetáculo bonito. Dar as costas para a cultura é um ato de preservação de valores. Não faltam exemplos de como se compadecem da destruição.

Tenho um amigo que é exemplo dos que acreditam piamente no diálogo como forma de superar diferenças. Coerente com isso, o diálogo tem sido seu instrumento de ação profissional e política, papel que, aliás, desempenha muito bem. Por isso, fiquei surpreso com uma de suas publicações no Twitter. Diante da ruína civilizatória pela qual passamos, ele disse ter compreendido — não como um estudioso de um período passado, mas como alguém que experimenta, adulto e crítico, a dureza e periculosidade de seus dias — a opção de parte da juventude dos anos de 1960 pela luta armada. Meu amigo em nenhum momento defende que peguemos em arma, mas, com a violência e o autoritarismo inconsequente à solta, ele conclui, a escolha pelo combate no campo do inimigo (a violência) não é destituída de racionalidade. Eu acrescentaria: é exatamente isso que o novo poder quer de nós, portanto, tratemos de decepcioná-lo. Mais Gandhis, menos — como são muitos os que ocupam o espaço oposto ao de um pacifista, não cito nomes, preferindo a imagem talvez distorcida de outro animal — abutres.


Imagem captada na Internet/sem crédito