26.2.22

Pra não dizer que não deixei de não falar dos horrores


Uma de minhas irmãs confessou que anda gostando de gim, mas que é para não nos preocuparmos, toma um drinque muito de vez em quando. Não me preocupo, mas cantarolo o conselho do velho Vinícius de Moraes, uma autoridade no assunto: “o gim é um veneno, cuidado, benzinho, não beba demais”.

A pandemia me transformou em sonhador. Quer dizer, uma vez acordado, a sensação dos sonhos sai da cama comigo, mesmo que eu não me lembre exatamente deles. Às vezes, acordo angustiado, mas, como não registro os sonhos — o que, numa mesa de bar, uma psicanalista considerou um pecado —, as imagens logo se dissipam. Volto a dormir, ou não. Dia desses sonhei que espalhava uns brinquedinhos de plástico ou umas bijuterias, não consegui definir se uma coisa ou outra, sobre o capô de um Ford Rabudo. Foi como uma volta a minha infância nos anos 1960, quando os táxis de minha cidade eram velhos automóveis dos anos 1940. 



Ford rabudo

 Numa mesa de bar, havia uma parente do Milton Nascimento. Isso não é nada e não seria nada se, de repente, o Deus em pessoa não passasse por lá. Muito simpático, deu um alô geral e foi para um compromisso. Eu havia me preparado tanto para aquele dia, arquitetado tudinho, mas não aconteceu. Falariam ao Milton: “Este é o Xandão”. Depois, a pessoa que nos apresentava me diria: “Você está careca de saber quem ele é, não?”. Eu responderia: “Claro. Muito prazer, Fernando Brant, sou seu fã”.

A piada criaria uma empatia imediata entre nós dois, e ele sentaria ao meu lado. Falaríamos de Minas, de nossas vidas em Passos e Três Pontas, cidades próximas. Quando ele descobrisse que eu escrevia umas bobaginhas, pediria uma letra, que eu rascunharia ali mesmo, e ele, ali mesmo, delinearia a melodia. A gente se transformaria em parceiro, emendando um sucesso atrás do outro. Algum tempo depois, alguém faria uma brincadeira com ele dizendo que o conhecia muito bem, ele não era o Xandão da Haydée e do Joaquim?

Sonho bom é sonho acordado.

Ao ver uma foto antiga, de pessoas desconhecidas, tive muita vontade de ser uma delas. Talvez pelos sorrisos. Ou pelo bolo, branco, semelhante à torta de abacaxi com coco que minha mãe fazia, mas nem sempre. Ela tinha disso. Uma das primeiras vezes que meu cunhado almoçou lá em casa, mamãe preparou um coq au vin, um trem chique. Bem, durante os demais trinta e quatro anos vividos por ela, meu cunhado pediu o franguinho francês. Não logrou sucesso.

Quando dona Haydée queria, em casa se fazia doce com a casca da melancia; também com a casca, no caso do abacaxi, se fazia o aluá, bebida, segundo ela, muito apreciada por Dom Pedro I. Quando a senhora que comia jabuticaba com garfo e faca queria, essas coisas de preparo delicado eram feitas. Mas só quando ela queria.

Na Copa do Mundo de 1974, ouvi a partida entre Brasil e Polônia dentro do Fusca vermelho, ano 1966, do meu irmão. Atravessávamos a Serra da Mantiqueira, indo do Rio a Passos. O rádio não ficava sintonizado o tempo todo, assim, até hoje não sei se ganhamos ou perdemos. Mas, também, era decisão de terceiro lugar, quem se preocupa com isso?

Outra viagem entre Rio e Passos. Dessa vez, eu dirigia, meu pai acompanhava. Fomos parados por excesso (não muito) de velocidade. Desci do carro, meu pai desceu também e, ao chegar perto de onde o militar anotava os dados da multa, me deu uma bronquinha, já havia me avisado para ir devagar etc. e tal. Voltando ao carro, ele olhou o relógio e, fazendo-se ouvir por todos, lamentou o nosso atraso, teríamos de correr.

O velho não demonstrava interesse por uma comida específica, a não ser, talvez, pelo pudim de pão. Mas, se o doce — feito quando mamãe queria — fosse servido na sobremesa, ele, magro e nem um pouco guloso, comeria um pedaço pequeno. Sóbrio no gostar, impiedoso no não gostar: naquela casa no Beco dos Aflitos, nem quando mamãe quis, se comeu bacalhau.

Seu Joaquim jamais foi de verdades ou filosofias. Mas não me estranharia se ele lançasse a máxima: lambisgoias à parte, o mundo não está para mexericas. Não quer dizer nada, mas meu pai era mesmo um pândego.



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Lançarei pela Urutau o livro de poesias "O sol pelo basculante". Como tem ocorrido nesse período de pandemia, as editoras vêm recorrendo à campanha de pré-venda, garantindo assim os recursos que viabilizem a produção do livro. 

Para acessar o site e adquirir seu livro (se dentro do prazo a meta não for alcançada, o dinheiro é devolvido), entre aqui. Vale dizer que há muitas opções de compra disponíveis, desde o livro eletrônico até "pacotes" com mais de um exemplar deste título ou com outros livros da editora. No site, é possível que o título ainda esteja com um pequeno erro, "um" no lugar de "o".

Espero que eu possa fazer uma noite de autógrafos, quem sabe um pouco diferente: em vez de meus amigos irem lá comprar o livro, levarão seus exemplares apenas para eu colocar aquela dedicatória que, graças a minha letra, ninguém entenderá. O vinho ou a cerveja, de todo modo, continuarão nos ajudando a manter alguma alegria em tempos tão sombrios.

Agora, se a compra já for a do livro autografado, bem, aí o encontro será apenas para tomar umas e outras e matar nossas saudades.

Espero que a pandemia arrefeça para que os planos de encontro se concretizem.

14.2.22

A felicidade deu adeus

Nada anda muito bem, e não é segredo. O Brasil já foi considerado o lugar do mundo no qual a felicidade batia ponto. O sol, a alegria e a miscigenação eram fatores que levavam àquela ideia.

Há algum tempo, um grupo de pesquisadores, levando em conta motivações subjetivas, levantadas em entrevistas, e objetivas, os indicadores socioeconômicos, começou a “medir” a felicidade. Segundo a pesquisa, em 2020 e em 2021, a Finlândia foi o país mais feliz do mundo.

Já estive em Helsinque, uma cidade sombria, cheia de bêbados caídos na rua, mas extremamente organizada. Na época (já se vão trinta anos), conheci alguns brasileiros ou filhos de brasileiros que viviam lá, todos com nível de vida bem razoável, ainda que se ocupando de funções pouco valorizadas. Um deles, que cuidava dos casacos deixados à entrada de um bar, me disse que, trabalhando também como pintor de paredes, conseguia ter um carro desses supercaros, ainda que não o modelo mais recente. Um país com um inverno tão rigoroso, clima que associamos a isolamento e tristeza, surpreende ao encabeçar a lista da pesquisa, ainda mais sendo acompanhado por Islândia e Dinamarca, segundo e terceiro lugares no ranking da felicidade. A despeito de toda crítica que se possa fazer a uma medida dessas, ela não parece encantada com o Brasil tropical, onde em se plantando tudo dá, mas também onde a fome só faz crescer. O modelo socioeconômico monstruoso adotado no país não deixa ninguém mais se enganar com a nossa alegria carnavalesca, que é, de fato, uma alegria — um, e apenas um, dos fatores que compõem a felicidade.

Entre os dias 24 de janeiro e 2 de fevereiro, uma face da atrocidade brasileira foi mostrada ao mundo. Assistimos na televisão a três homens matando a paulada Moïse Mugenyi Kabagambe, um congolês de vinte e quatro anos. A paulada. Matar assim exige perseverança, o que não combina com uma raiva momentânea. Aqueles assassinos estavam tomados por uma premeditação bestial. A família de Moïse havia saído do Congo treze anos antes dessa tragédia que a acometeu. Fugiam de outras tragédias, inúmeras num país rico em minerais e, mesmo depois de se tornarem independentes da Bélgica, massacrado por interesses externos que se misturam às lutas locais de poder. Luiz Antonio Simas, pesquisador da vida de rua carioca, afirmou o seguinte: “O melhor que existe nessa cidade terrível e bela, filha da morte e da chibata, veio do Congo: samba”. O crime contra Moïse afirma a voz dos que não se conformam nem com o fim da escravidão nem com o fato de uma de nossas manifestações mais criativas, pérola na lama de nossa história, ser obra dos negros. Acrescentem-se a isso doses de xenofobia.

No dia 2 de fevereiro, enquanto havia festa no mar, Iemanjá celebrada, um militar viu um negro, Durval Teófilo Filho, trinta e oito anos, mexer em uma pasta e achou que seria assaltado. O que fez? Atirou contra a possível ameaça. O assassino e a vítima eram vizinhos em um condomínio no Colubandê, bairro de São Gonçalo. No início, a polícia chegou a defender a tese de que o assassino não tinha a intenção de matar. Qual seria então a intenção? Comemorar o gol do time? Usar a arma por usar? Testar a mira? Com a reação da sociedade, o militar da Marinha foi qualificado como assassino doloso. O que ele é, e não é o único, e não será o único à medida que armar a população tem sido a política de segurança do atual governo.

A morte de Moïse e a de Durval infelizmente não são um acidente. Matam-se negros aos montes. A polícia entra em favelas e, quase sempre, deixa um saldo escandaloso de mortos. Negros na maioria, muitos inocentes, sem envolvimento com o tráfico ou outra forma de crime. Como soldados do tráfico, negros também se matam uns aos outros. Negros são mortos na porta de casa como foi o caso de Durval e de outros tantos, crianças inclusive, que podemos puxar da memória. Na imagem que mais nos aproxima da chibata dos tempos da escravidão, negros levam pauladas até a morte.

No Marrocos, Rayam Awram, um menino de cinco anos, foi tragado por um buraco de trinta e oito metros. O drama de seu resgate durou dias, e os marroquinos, mas não só eles, acompanharam diuturnamente o esforço da equipe de socorro. No quarto dia, o pequeno Rayam foi resgatado, mas não resistiu. Marrocos transformou essa tragédia em uma dor coletiva.

Dor coletiva deveria ser a nossa diante da morte de Moïse e Durval. Mas o fato é que esses crimes não encontram o repúdio de todos, em particular daqueles que podem mudar as leis e fazer cumpri-las. Ao contrário, quando mataram Marielle, em ações coordenadas pela milícia digital, trataram de associar caluniosamente a vereadora a criminosos. Agora, dizem, Moïse seria um drogado inoportuno. E que absurdo foi esse de Durval mexer em uma bolsa em uma região considerada violenta? Em 2018, Rodrigo Serrano, um garçom negro, desceu ao pé do Chapéu Mangueira para esperar a mulher e a filha. Chovia, e ele abriu o guarda-chuva. Foi o suficiente para a polícia deduzir que ele estava armado de um fuzil. Atiraram sem pena nem dó. Muitos batem palma para a polícia e vão à loucura quando se estuda uma mudança na lei que dê a ela licença para matar, o tal “excludente de ilicitude”. 

Nada anda muito bem? Corrijo-me: tudo anda mal. Demos adeus à felicidade.