19.9.08

O mundinho das palavras

A palavra Proxeneta, ao admirar-se no espelho, vê cair-lhe muito bem o ch, pois julga que daria vida à sua testa absconsa.

Houve um momento em que representantes de todas as classes gramaticais iniciados por A e por M, letras com que se crê começar a maioria das palavras, se reuniram para comunicar ao Demorar que, ultimamente, ao dizê-lo não se falava apenas tardar, atrasar, custar. Demorar passou a ser uma despretensiosa, e de múltiplos significados, interjeição. Ratos de dicionário disseram que havia registros de Demorar na acepção de morar. E Morar pousara, noutros tempos, com o mesmo ar de interjeição. Os bichos-grilos insistiam: morô? As tribos, por seu lado, repetem: demorô! Demorar riu da novidade, não mais do que notícia requentada.

Gramsci, a soma de letras e não o homem, nunca foi presa ou escreveu livros, quanto mais livros estando presa. Todavia, se o destino aprisioná-la num caderno quadriculado, desses matemáticos, escreverá, como Neruda, os versos mais lindos de alguma noite assinando-se como “Apedeuta Magrisc”.

Saudade dispensa dicionários. Apesar de tamanha distinção, em suas reflexões, ela vê em si saúde, sal escrito errado, duas e, ainda, seda. Essa multiplicidade não lhe confere nenhuma qualidade superior, pois entende-se pequena por abrigar tantas palavras, quando já não bastasse ser um sentimento monoglota.

O adjetivo Lento, nos seus dias de ansiedade, é capaz de rasgar a nado e afoito um parágrafo literário e comprido, deixando-o despido de pontos e vírgulas, não exatamente nessa ordem.

Latido é mudo, e morde.

Na virada do século, promoveu-se concurso de beleza entre as palavras. Ninguém se lembra de quem o venceu, mas a derrotada virou assunto de muitas rodas. Abavô perdeu, não por duas polegadas a mais nos quadris, mas porque nunca e em lugar nenhum foi conhecido algum pai de tataravô, o que fez com que os jurados concluíssem que beleza dessa natureza não era exatamente beleza. A polêmica durou muito tempo e resultou, ao lado de rixas perpétuas, numa amizade sólida e solidária entre a concorrente derrotada e a Arte.

Veado é uma palavra heterossexual com tendências a monogamia. Luminescência, por sua vez, foi a primeira a jogar fora os porta-seios e a declarar-se publicamente parceira de outro substantivo feminino. Entre os masculinos, Fosfato e Anacoluto encontraram-se na época da rebeldia, da afirmação. O segundo morreu de doença sexualmente transmissível. Fosfato, esse criou a primeira ONG voltada às questões vocabulares homossexuais.

De tanto ouvir a piada, Arroz acredita ser a maior palavra da língua portuguesa.

Plural bebe muito.

Singular ensaia peça de Lípare, uma de suas tragédias, há não se sabe quantos anos. Não é um monólogo, mas ela faz questão de interpretar todos os papéis. Ultraje desconfia que esse projeto seja como a colcha de Penélope.

Nem todas as palavras são felizes.

Por sorte, os Verbos não rezam a Bíblia, assim desconhecem que se dá a eles o primarismo da existência. São humildes. A Associação dos Adjetivos Positivos, cujo presidente, por imposição do regulamento, é Pelancudo, fez circular entre as páginas centrais dos principais dicionários (alguns se recusaram) a coscuvilhice segundo a qual a pletórica humildade dos Verbos não condiz com suas atitudes, que se poderia dividir, numa visão otimista, em cinqüenta por cento visando ao bem, cinquenta ao mal.

Alienada de contendas políticas, Amar separou-se. Não é a primeira vez. Comenta-se, no cochicho das conversas de bares, de salões de beleza, de bate-papos no transporte público, que Amar é volúvel, ou tornou-se volúvel nestes tempos em que os dicionários não são mais de papel.