27.10.11

Autoajuda para iniciantes e assemelhados


Lance mão de uma bengala. Apoio para pernas vacilantes e verdadeira arma, a bengala, além de tudo, é um instrumento elegante.

Olhe-se no espelho até se dar por convencido de que é uma pessoa razoável. Acumula erros, mas, igualmente, acertos. São poucos aqueles que se quedam na dúvida defronte da chapa fria, pois, no mais das vezes, ninguém abandona a si mesmo ao léu.

Lustre os sapatos ou as sandálias. Se estiver de havaianas, preste bastante atenção nas unhas; se for o caso — e tendo em mente que vermelho alimenta a falta de juízo própria e alheia —, no esmalte.

Antes de sair, coloque livros sobre a cabeça e ande ereto pela sala. Não escolha livros pesados, na avaliação de uma balança, nem leves, em conteúdo. É aconselhável simular dois passinhos de valsa, cantarolando aquela velha canção.

Ligue para o telefone de um amigo, deixe-o atender, certifique-se de que de fato é ele, e então desligue sem lhe dirigir a palavra. O amigo, se tiver aparelho com bina, ligará de volta. Caso contrário, achará tratar-se de mais um erro desse sistema telefônico que está por um triz. O importante é você ter ligado sem errar o número. Sua memória está tinindo, ao contrário da de muitos da sua geração. Viva! No entanto, se a ligação cair em telefone errado, bem, o sistema telefônico anda mesmo por um triz.

Carranca do Museu de Artes e Ofício - BH/MG (foto própria)
Antes de ir para a rua, dê dois, e somente dois, gritos. Exagere. Faça de conta que é sua última palavra, mesmo não sendo feito de palavra seu grito. Agora sim, dirija-se à porta. Use as chaves para abri-la e, posteriormente, para fechá-la. Em porta trancada, não entra o olhar mosquito do vizinho.

Antes de descer até a portaria, vá, de elevador ou de escada, ao cume do prédio. Pode ser que a sorte lhe tenha reservado, ao fazer esse caminho, um encontro capaz de dar uma sacudidela em sua vida. No caso de morar em casa, troque portaria por portão. O caminho até o cume da casa, por sua vez — particularmente nas casas térreas, de um só andar —, não reserva surpresa alguma, esteja certo disso. Então, se morador ao rés do chão, pule essa parte, corra ao portão e seja o que Deus quiser.

 Museu de Artes e Ofícios - BH/MG (foto própria)


Cumprimente as pessoas de forma silenciosa, apenas movendo a cabeça. Com isso, não se corre o risco de cair na armadilha ardilosa da entonação da voz, invariavelmente cheia de segundas intenções, e, ainda, ajeitam-se as ideias soltas e mal arranjadas no interior da cuca.

Tome café com o dedo mindinho esticado. Esteticamente é aconselhável, mas não só isso. Em um momento de tédio, recolhe-se o dedinho, tornando, com um simples gesto, menos aborrecidas a tarde, o dia, quiçá, a vida.

Não alimente os santos com a danada da cachaça. Está provado que eles não gostam de sexo, droga e rock’n’roll. Além do mais, as cachaças andam pela hora da morte, ostentam grifes e ficaram caríssimas. Não desperdice seu dinheiro, nem arrume inimigos no reino do céu.

A cada seis horas, como se fosse antibiótico, tome uma atitude insuspeita. Se, por acaso, tal atitude não cheirar muito bem, trate de se afastar do local do crime com um assobio preso à boca. Escolha uma melodia de Wagner, compositor difícil e adulto, haja vista que parecer difícil e adulto poderá livrá-lo de qualquer desconfiança das vítimas do futum.



Por fim, uma crônica sem-noção é melhor do que má noticia, dessa forma, perdoe o cronista e seja feliz — ou não.

7.10.11

Um segredo para o Drummond


Para Angela Bittencourt, que sugeriu a crônica



Dia desses, uma “notícia” no site de humor G17 registrava a provável ideia do Governo do Rio de Janeiro de mandar internar as pessoas que costumam sentar-se ao lado da estátua do Drummond e conversar com ela.

Numa conversa com Otto Lara Resende.
Em suas colunas na Folha Carioca, Lilibeth Cardozo e Ana Flores já registraram suas conversas com o poeta agora em estado de bronze. No Facebook, muitos se confessaram igualmente íntimos do Drummond. Nunca falei com ele, mas já troquei ideias com outra estátua, a do Otto Lara Rezende, que fica na esquina da Jardim Botânico com a Pacheco Leão. Nenhum de nós, interlocutores das estátuas, é maluco.

Há duas maneiras de se ler a tal “matéria”. A primeira do ponto de vista da crítica ao governo, podendo, por omissão no texto, ser o municipal ou o estadual. Ambos, nesse tempo de urgência na arrumação da casa para as olimpíadas e a copa do mundo, são alvo fácil dos humoristas. E os políticos, aventurados como eles só, fazem por onde, seja não cuidando do bonde de Santa Tereza, um dos cartões postais da cidade turística, seja deixando cair sobre a vida pessoal, à medida que o particular se imbrica com o público, toda espécie de suspeita. Tendo os políticos que temos, não é de todo descabido aparecer do nada um decreto, ou mesmo uma lei, nos termos imaginados pelo G17. Pensariam assim o prefeito e/ou governador: não cuidamos do bondinho, é verdade, mas antes amealhar meia dúzia de mortos pelo caminho do que deixar esses perigosos órfãos e viúvos de Drummond exibirem sua loucura à luz do sol na praia mais famosa do mundo.

A outra leitura poupa os políticos, colocando-os na pretensa matéria apenas como a azeitona com caroço da empada nossa de cada dia. Nesta leitura sobressai a confiança, ou idolatria, que depositamos no Drummond. As colunistas da Folha, o bêbado de uma foto famosa, eu, algum dia, você, talvez, e outros, muitos outros já recorremos ou vamos recorrer ao colo em bronze do mineiro das terras do ferro, que está em Copacabana, como o verdadeiro anjo torto, à disposição de quem carece de consolo. Não basta abrir e ler seus livros, precisamos do contato fingido e teatral, que a existência sem vida de uma estátua permite.

Chacrinha, Drummond, Otto Lara Rezende, Pixinguinha, Noel Rosa, Braguinha e Ary Barroso são alguns dos que ganharam estátuas espalhadas pela cidade. Na maioria delas, os homenageados foram flagrados em momento de intimidade. Drummond sentado no banco da praia; mineiramente, de costas para o mar. Otto com o cotovelo na mesa do escritório, tendo à mão um livro. Noel pedindo ao garçom para levar a ele uma média que não seja requentada.

Sendo as estátuas de personagens mais ou menos nossos contemporâneos é justo que os visitemos. Que levemos nossos segredos para compartilhar com quem compartilhou de certa maneira os seus conosco. Artistas de modo geral falam de si o tempo todo, mesmo que não se possa ligar diretamente sua vida a sua obra. Contam-nos segredos de forma tão dissimulada, que um poeta, dos maiores, definiu seus pares como aquele que “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E completa: “e os que leem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só a que eles não têm.”

As estátuas, enfim, dão-nos à mão o que, sem elas, seria apenas sonho: o convívio amiúde com nossos ídolos. Por tudo que estes significam, falar com eles, mesmo em presença simbólica, não é loucura. Sendo assim, concluo que o G17 estava mesmo de pinimba com o prefeito e/ou com o governador. Aposto, e torço por isso, que humoristas continuarão na cola deles. E não só na destes, pois os políticos andam extrapolando o contorno do razoável. Merecem, portanto.