18.4.16

Mexendo na língua

“Um orador de boca cheia é um virtuose de refugos: na cesta de entulhos da literatura vai recolhendo imagens esfiapadas, carretéis perifrásticos, antíteses ruborizadas, prosopopeias trovejantes, metonímias desparafusadas, clips enferrujados, anáforas babadas, tmeses tortas, anacolutos malignos, sinédoques descartáveis e demais tropos e trapos de hiperbólica aceitação no mercado paralelo.” (Paulo Mendes Campos, Congelamento.)


Ao longo de sua existência, nosso português de todo dia tem sofrido muitas alterações em suas regras ortográficas. Na primeira metade do século passado, trocaram-se “pharmacia” por “farmácia”, “caza” por “casa”, “sciencia” por “ciência”. Recentemente, tiraram o trema de “linguiça” e, cortando na própria pele, de "linguística". Mataram o trema, eis a verdade. Se a grafia antiga soa, depois de um tempo, estranha, deixar uma determinada grafia de lado não é nada fácil, porque os que a usavam acostumaram-se com um jeito de escrever e, da noite pro dia ou num intervalo de tempo acordado longe de todos, em gabinetes, veem-se obrigados a abandoná-lo e adotar outro. A última reforma, presente em nossa memória e bastante contestada em Portugal, prova isso.

Tenho comigo que, ao mudar uma grafia, não só a relação das pessoas com a palavra é modificada, como também a coisa nomeada por ela ganha um novo destino. “Pharmacia”, durante muito tempo, foi o local onde os medicamentos eram preparados e vendidos — o que atualmente chamamos de farmácia de manipulação. Ao trocar “ph” por “f”, abriu-se caminho para a proliferação das farmácias, que passaram a vender remédios (e não só) produzidos em laboratórios. Quando se escrevia a palavra à moda antiga, na minha cidade natal, não devia haver mais que duas. Hoje, no quarteirão da minha casa, no Rio de Janeiro, são três, e, ao longo da rua com seus dois quilômetros, quinze ou mais. Estamos mais doentes? Temos mais possibilidades de nos curar? A doença e sua cura sustentam uma indústria rentável? Tudo isso é verdade, mas a mudança ortográfica impingida à palavra reinventou o negócio e garantiu o sucesso comercial do estabelecimento farmacêutico.

Quando fui alfabetizado, escrevia-se “êle”, “almôço”, “govêrno”. Concordo que ficou mais fácil escrever essas palavras sem o acento, entretanto, assim como o homem sem chapéu perde um pouco de sua necessária formalidade, ao perder o acento circunflexo, a palavra que designa a terceira pessoa do masculino jogou essa terceira pessoa na vala da vulgaridade. Pense nas refeições feitas atualmente: cada membro da família num canto da sala, com o prato no colo e a cabeça nas nuvens do celular. Isso seria possível no tempo do “almôço”? Nunca! Nem falo em governo (que, cauteloso, não volto a escrever na grafia cerimoniosa de antanho). Tenho de fazer uma pequena reflexão sobre a palavra “ela”, sempre escrita sem o adorno do circunflexo. Quer dizer que as mulheres foram e são vulgares? Muito pelo contrário, um chapéu a mais ou a menos não as diferenciaria em nada, razão pela qual não se acentuava a palavra antes e não se passou a acentuá-la depois da reforma levada a cabo durante a ditadura militar. Vulgar são os homens. (Ufa, acho que me saí bem.)

Reformas ortográficas têm sido feitas aos borbotões, só que ninguém mexe naquilo que facilitaria nossas vidas. Acompanhem meu raciocínio.

Você sabe o que são as perífrases? Não? Puxe pela memória. Perífrase é, segundo o Aurélio, a “designação de alguém ou de algo por construção que dê relevo a uma de suas qualidades, e não por seu nome”. O exemplo do dicionário é “a luz de minha vida em lugar de meu amor”. Talvez, feito eu, você conhecesse a “coisa”, mas nunca soube seu nome — ou, se soube, não o reteve.

Sem querer abusar de sua paciência, vou ao fundo do fundo buscar a palavra “tmese”, sinônimo de mesóclise, quer dizer, a “intercalação de pronome átono em um verbo”. Um exemplo da minha cachola: “Dir-te-iam, em áureos tempos, que andamos às cegas rumo ao fim do mundo.” Uma frase meio pessimista, mas esqueça sua mensagem, a frase tem a única intenção de ilustrar o que vem a ser uma tmese.

As palavras anteriores e outras tantas, mal-encaradas em sua essência, fazem parte do que poderia ser visto como o suprassumo da gramática. Todos passaríamos bem sem elas caso não enfrentássemos tantas provas ao longo da vida de estudante. Provas que, nesse caso específico, foram apenas uma cobrança da nossa capacidade de memorização.





Meu texto quis apenas isto: chamar a atenção para os efeitos das mudanças no terreno da língua. (Acabo de escrever uma catáfora, “unidade linguística que se refere a outra, enunciada mais adiante”). Como os exemplos que citei provam por a mais b, as mudanças ortográficas repercutem na vida real, que vibra muito além da palavra escrita (o que podemos esperar do mundo lusófono sem o trema?). Sendo assim, um conselho, a essa altura óbvio, aos sabichões que porventura resolvam dedicar seu precioso tempo à exigida simplificação: muito cuidado com as consequências que podem advir daí. Pensem, ponderem. Repensem e ponderem mais uma vez. De qualquer modo, pelo amor ao deus das coisas triviais, corram o risco. Antevejo, de cara, um efeito colateral positivo na mudança: facilitará a decoreba, melhorando, com isso, a nota da moçada.

4.4.16

A Bahia em dias nublados

Ao João, que me proporcionou a viagem.

Segunda praia, o point de Morro de São Paulo. Foto do autor.


O poeta Carlito Azevedo postou no Facebook a história de uma bailarina russa de noventa anos que afirmou, em entrevista, que os melhores anos de sua vida haviam sido os vividos entre 1936 e 1942. Justo quando ocorreram os expurgos de Stálin e grande parte da Segunda Guerra?, reagiu o entrevistador. Para a bailarina, não havia mal nenhum nisso já que, naquela época, ela era jovem e bela, o que bastava. O intuito de Carlito era dizer que, apesar da espessa nuvem que cobre os dias de 2016, nada impede que, nele, cada um de nós possa ser feliz. Seu otimismo tinha a ver com a beleza do outono, que chegava. Otimismo relativo, Carlito alertava, agarrado a Drummond, haja vista que a felicidade coletiva estava transferida para o próximo século.

O país de fato está capengando, mas eu estive na Bahia. Eu e meu filho mais velho, o bom João. Lá, reencontrei meu primo Fernando e também o amigo Ricardo. Lá, fui conhecer a Praia do Forte e o projeto Tamar. Lá, depois de mais de trinta anos, voltei a Morro de São Paulo, agora uma ilha toda incrementada, cheia de vida e luz, tão diferente daquela da qual saí justo no dia em que a eletricidade chegava para os ilhéus. Dela, minhas lembranças eram um misto de pôres do sol, pratos feitos de siri catado, praias vazias e morcegos. O pôr do sol está lá intocado, ninguém brinca com ele. Come-se bem — só que não me ofereceram PF de siri —, ainda é possível encontrar um naco de praia vazia (distante), mas os morcegos retiraram-se, sobrou-lhes menos espaço. Assim é, quando o homem, munido de luz, toma conta de tudo.

Fim de tarde visto não do Farol, ponto de observação do pôr do sol, mas de um barco. Foto do autor.


Eu e meu filho somos pessoas caladas, o que nos torna contempladores da natureza, caminhantes incansáveis. Na Bahia, quando foi preciso, tomamos decisões (regadas a cerveja e falando baixo) que garantissem exclusivamente o descanso, o desfrute do nada. É certo que olhamos as mulheres, mas, sendo homens que não gostam de esbravejar, de falar a linguagem de macho conquistador, lá pelas tantas, não na hora H — no momento do desfrute visual, um ou outro comentava que não era pequeno o número de meninas bonitas, argentinas, na maioria. Morro de São Paulo parecia um território argentino (um pouco uruguaio, quem sabe). Jovens e outros nem tão jovens circulavam pela vila, e o espanhol ecoava livre pelos becos. Ouvi alguns baianos indo além do portunhol, gente preparada para receber turistas. Em certas lojas e restaurantes, vi placas escritas no que me pareceu árabe e que depois soube era hebraico. Contam que os israelenses visitam muito o lugar. Bobo de quem não o visita. Há muita gente para pouco espaço, é verdade, mas a beleza compensa a muvuca.

Falei dos gringos, mas os baianos estão lá, negros e bonitos. Jovens fortes — mulheres altas, de pernas rijas (resultado de tantos morros no caminho diário). Muitos rapazes vivem de carregar malas e mercadorias em carrinhos de mão, um dos meios de transporte mais importantes da ilha. (Há, ainda, um trator para recolher o lixo e transportar alguma mercadoria mais pesada, poucas motos e algumas bicicletas, todos alocados nos serviços de utilidade pública). Tudo bem organizado, com trabalhadores credenciados. Isso me fez pensar se essa não é uma tarefa pesada demais para alguns jovens e para outros que estão numa idade “muito” adulta. Por outro lado, o que seria deles sem isso? As agruras da realidade sempre vêm cobrar meu posicionamento. Sem resposta, volto, não como fuga, ao belo.

Boipeba, ilha vizinha a de Tinharé. Foto do autor.


E como é belo aquele pedaço de terra que recebeu cedo os portugueses. Aprendi em um fôlder que Martin Afonso de Souza aportou por lá em 1531 e batizou a ilha de Tynharéa, hoje Tinharé. Por sua localização (na chamada barra falsa da Baia de Todos os Santos), a ilha esteve envolvida em muitos conflitos, ora com franceses, ora com holandeses que procuravam atacar a colônia portuguesa. Na internet, por sua vez, afirma-se que ali Hitler teria afundado submarinos brasileiros, forçando nossa entrada na Segunda Guerra. Nada disso, porém, destruiu o lugar; não sei se o turismo, as construções de pousadas e casas conseguirão fazê-lo, ao poluir as águas com esgoto não tratado, por exemplo.

Venho fazendo tudo para falar do belo e, nos últimos parágrafos, esbarrei em senões. Não tem nada a ver com os tropeços do país, é coisa minha, um pessimismo miúdo que gosta de furar os olhos da minha fé na vida. Tenho muito a aprender com a bailarina russa, mas ela não está entre nós, imagino. Se estiver, saberá ensinar? É matéria que se ensine? Que se aprenda?

Eu e João, ao sairmos do hotel, levávamos em uma bolsa térmica meia dúzia de cervejas. Quero dizer com isso que, mesmo diante da crise, há meios de fazer uma viagem não tão dispendiosa e, assim, garantir uma dose de alegria e encantamento. Quando a realidade não me deixa esquecer, sei muito bem disso.