24.6.19

Burocratas contra o encanto


Começo com uma história. Eu estudava na USP e tinha um colega de Pernambuco, um funcionário público licenciado que viveria em São Paulo enquanto durasse o mestrado. Ao tomar uma carona com ele, vi que seu carro tinha placa de Recife. Imaginei sua viagem para São Paulo. Saíra numa manhã de sábado, dirigira uns 800 quilômetros, parara para descansar em Feira de Santana, na Bahia, e seguira viagem no domingo ainda de madrugada, quando, lutando contra o cansaço, percorrera os quase 1.900 quilômetros restantes até São Paulo. Ou, o que parecia mais sensato, fizera outra parada em Belo Horizonte, 1.300 e tantos quilômetros de Feira de Santana. Ou viajara sem tanta pressa pelo litoral, curtindo praia, conquistando amores.

Quando perguntei ao colega sobre a viagem, constatei que minhas especulações passaram longe da verdade, ele despachara o carro num navio. Sim, embarcara o carro no bem-bom de um navio em Recife para resgatá-lo em Santos. É uma história menor? Não, não é, só é um pouco mais fria, um carro no navio, seu dono no avião.

Na época dessa história, o padrão das placas dos automóveis era o de duas letras e quatro algarismos. (Meu pai tinha um KT 0108, que eu chamava de “Catoio 8” — mas isso não tem importância.) Pouco depois, as placas passaram a ter três letras seguidas de quatro algarismos. No mais antigo e no que o substituiu, deveriam estar impressos o estado e o município.

No momento, está em processo a implementação de um novo padrão, agora com três letras seguidas por um algarismo, outra letra e mais dois algarismos. Não há mais a indicação do estado ou do município, somente a do país. Assim, atende-se ao propósito de dar unidade aos países que formam o Mercosul, já que segue as diretrizes indicadas por ele. Nada contra.

Nada contra, mas há um problema: ao abandonar o modelo ainda em vigor, perdemos uma fonte primorosa de devaneios e inspiração. Coloquem-se na Praça JK de Cássia, Minas Gerais, por onde passa um carro de Desterro, Paraíba, com a placa GKL 0229. Não captou a questão?




Serei didático. Nas placas que estão sendo deixadas de lado, as letras iniciais indicam o estado do primeiro emplacamento. Quando esse modelo entrou em vigor, o Paraná serviu como teste. Por isso, carro com placa que se inicia com a letra “A” foi necessariamente registrado lá. Pavimentei a estrada aonde quero chegar. Continuo.

Uma placa GKL teve origem em Minas Gerais. Na do carro que passou por Cássia, terra de tantos parentes e onde Antonio Candido passou a infância, a cidade indicada é da Paraíba. Um cassiense, morador da Paraíba, terá comprado o carro na cidade natal e, como vivia na outra cidade, fez o certo e o transferiu para o local de moradia? Ou o carro teve origem em outro ponto de Minas e o sujeito da Paraíba passava ali por Cássia por acaso, talvez com o objetivo de, tomando a estrada para Delfinópolis, chegar à Serra da Canastra para curtir uns dias com seu novo amor?

Perguntas sem resposta. Pergunta sem resposta se parece com poesia: ambas alimentam os sentidos, e só (só?). A mudança ora em processo nos tira essa desciência tão cara à imaginação. Os burocratas agem contra o encanto; é birra deles.

As novas placas nos impedem de devanear, de imaginar a possível história de amor que carrega um carro emplacado no Rio Grande do Sul e transferido para Roraima estar circulando por Maceió. Alguns dirão, ora, amplia o foco, pense num carro do Brasil nas ruas da Bolívia ou do Chile. O que não esconderá? É verdade, mas, nesse caso, o certo é pensar em viagens turísticas — a família ou os amigos realizando um sonho antigo —, ou, desculpem-me a dureza e o possível preconceito, em roubo. Podem até ser histórias bonitas ou aventureiras, mas previsíveis e menos românticas do que aquelas insinuadas pelas placas gravadas com estado e município.

15.6.19

Reaparece o professor

Escrito em junho de 2019 para a 19a. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que homenageou Gilberto Abreu, escritor, professor e político de Passos que vive em Ribeirão Preto.

Uma pequena confissão: estar aqui entre estes quatro é uma alegria sem tamanho. Quando comecei a escrever, jamais imaginei que um dia estaria na condição de colega desses escritores, sentado à mesma mesa. É muito para o Xandão da dona Haydée e do seu Joaquim.

A satisfação pessoal não termina aí, ao contrário, aí é o seu início. Estou aqui porque o homenageado de evento tão importante apontou a mim e aos demais passenses como parceiros de sua trajetória. Estou aqui pelo nosso Gilberto. Nosso, digo, de seus familiares, de seus leitores, de seus alunos, de seus amigos, de seus conterrâneos. Agradeço ao Gilberto e à Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto pela oportunidade de participar dessa comunhão.

Devo esclarecer que as minhas lembranças do homenageado estão embaladas em névoa. Um pouco porque sou desmemoriado, outro pouco porque há vazios e rupturas em nosso convívio. Portanto tudo que será dito aqui pode ser um delírio meu.

Nosso convívio começou em sala de aula. Gilberto foi meu professor de História no Colégio Polivalente, em Passos. Essa afirmação é incontestável. A que deveria vir colada a ela, se foi um bom professor, já me remete à zona cinzenta. Será que não me lembro, simplesmente não me lembro? Isso não é possível, pois me recordo de tantos outros professores. Cito alguns: Carabolante, Zé Leite, Leonor, Osvaldo, Marlene, Teresa, Faria, Martinha, Piruá, Marcão, Reinaldo. De cada um deles posso contar uma história, duas, falar de nossas rotinas. Do Gilberto, não. Por quê? Porque ele sumiu. Simplesmente sumiu. Um dia estava, no outro dia não estava. Sabendo-se que estávamos na década de 1970, em pleno governo Médici, é possível supor, sem grande esforço, o que teria ocorrido. Não posso afirmar nada categoricamente, nem mesmo com o querido Gilberto conversei sobre aqueles dias, mas, ora, ora... A época em que o professor que estava deixou de estar coincide com a mudança dele para Ribeirão Preto, aqui onde, não sei se na flauta, e imagino que não, ele foi abraçado, tornou-se um professor de prestígio, um político de prestígio e, por fim, consolidou-se como um escritor do andar de cima da literatura brasileira.

Bem, mas, do meu ponto de vista, nosso convívio tem outras incertezas. Um dia eu estava na porta de minha casa em Passos, ao lado de onde um pouco depois iriam morar os pais do Gilberto e seus 832 irmãos, e não sei se ele, se minha mãe — não sei, efetivamente não sei —, alguém fez com que seu primeiro livro caísse em minhas mãos de menino desinteressado por literatura. Aposto que era aquele livro. Aqui nem mesmo o contexto histórico me ajuda. Sou eu, eu mesmo e um livro — e é tudo. O primeiro livro do Gilberto, bem sei, é “Feto Outonal”, e foi ele que minha desmemória colocou em minhas mãos lá em 1975, 1976. Se me lembro do livro? Não. Apenas — e agora é a hora da verdade, pois o querido Gilberto poderá dizer, “Xandão, o que você fumava na sua adolescência? Nada disso é real, você misturou histórias, se é que não fez coisa pior” — que ele era ilustrado por outro artista passense, o multitalentoso Gustavo Lemos (já falecido). Ao lado de uma das ilustrações — da qual não me recordo, claro —, havia um versinho, desses que são anteriores a nossa existência: “Zé prequeté tira bicho do pé pra bebê com café”*. Do versinho nunca me esqueci. Do livro não lido nunca me esqueci. A literatura entra na vida da gente até quando não entra.

O que há de mais forte na figura do mestre, uma das vigas que sustentam esta festa do livro, é a imagem borrada, espectral, enfim, poética que mantenho dele.

Mas eu, homem de quase 60 anos, não poderia ficar apenas nisso. Então, ao me preparar para esta participação, corri atrás de alguns de seus livros. Não encontrei em minha casa o “Feto Outonal”, ainda que seja provável que esteja lá, que o tenha ganhado de minha mãe. Mas estavam lá “Lorca Balada Louca” e “Beijos a Gardel”.

Na leitura recente, o Xandão quase maduro poderia ter sepultado o outro que guarda apenas brumas e devaneios de um poeta que admira. Não, isso não aconteceu. Ao ler esses livros, vieram outras tantas especulações. Como é que esse cara conjuga Borges com Lorca ou Passos com o mundo? Qual é o alfabeto que só ele domina?

É um homem da utopia de uma América grande e integrada. É um homem que cultua Maiakóvski. É um homem que agregou ao vermelho o verde, arrisco a dizer que de forma pioneira.

Muitas dessas coisas estão presentes nos livros citados. O romance, uma escrito-leitura de “A morte e a bússola”, de Borges, mereceu o prêmio Guimarães Rosa, de 1990, e merece reedição. Os poemas são uma mistura de nostalgia com semeadura do futuro, o que se vê no seguinte verso de “Pelas ruas do mundo”: “Findos os meus ócios, deixe / em Passos os meus ossos. // Lá me tornarei adubo fecundo: / onde passam as ruas do Mundo.”

Por intermédio da literatura, o mistério, se não se resolve, se insinua: aquele professor que estava e deixou de estar da noite (e que noite!) para o dia (nublado por muitos anos e, agora, novamente nublado, se é que não voltamos à noite) é uma usina de humanismo. Isso me consola, me anima, me faz ter certeza de que Gilberto foi um dos meus melhores professores e, com certeza, aquele cujos distraídos e pouco estruturados ensinamentos continuam a fazer eco neste meu coração de poeta.
Como eu suspeitava, o livro existe e eu o ganhei.


* Texto adicionado depois do encontro em Ribeirão Preto: Gilberto Abreu me deu um exemplar do livro. Confirmei a autoria das ilustrações e que existe mesmo a página citada. Fiquei sabendo que Antonio Barreto é o autor do prefácio do livro, uma novidade e tanto para mim.

10.6.19

O que é então, moço?

Sonhava com uma fazenda, um pedaço de terra onde pudesse plantar umas poucas frutas e legumes. Para comer de quando em quando pamonha e curau, uma plantação igualmente modesta de milho. A felicidade, que nunca é plena e permanente, pousa de leve num mundo assim, ou assim com o acréscimo de um cavalo cujo nome poderia ser Equinócio, uma graça tola, mas, ora, as graças tolas eram a própria razão de seus devaneios.

Uma queda d’água. Árvores generosas em sombra. Galinhas poedeiras e um galo bom de bico. Um rádio de pilha e seus programas da hora da alvorada. Botinas e sela penduradas numa parede escanteada. Durante as noites, um gambá e um morcego disputando o forro da casa. Isso tudo já como excesso.

O futuro imaginado é um passado já vivido nas terras da avó, onde cavalgava um tal Segredo. Só falta ser sem luz, sem água quente, com mugido de vacas leiteiras antes mesmo do bom-dia do rádio.

Algo está errado. Esse sonhador preza a multiplicidade urbana, caótica e perigosa. De onde veio essa maldita nostalgia? (Nostalgia não; outra coisa: ilusão.) Melhor perguntar a ele.

O que há contigo, moço?

Um amor que chega ao fim? Sim, um amor nesse ponto.

Um retrocesso político? Sim, esse que se vê.

Pessimismo com o futuro do universo? Sim, a natureza não vai dar conta.

Nós, leitores de Paulo Mendes Campos, não sabemos que o amor sempre está a ponto de acabar? Quando é que a política não nos cobra atenção? Quando é que não destruímos a natureza?

Hein, moço?

Os quase sessenta anos já pesam? Sim, esse peso.

Os filhos feitos? Sim, a independência deles.

A falta de grana? Nem me diga.

Ora, antes chegar aos sessenta do que não. Que bom que os filhos vão à luta. A grana vem e vai, pense nos seus pais, pense nos amigos.

O que é então, moço? Vamos, me responda, pois eu também ando fugindo da realidade, se não sonho com a vida rural, sonho com Marte, com outra galáxia. O que está acontecendo? Não pensamos mais em mudar o mundo?


Bansky.