26.7.15

A segunda mãe


Não fui gerado metade num útero, metade noutro, não tendo sido, no início da década de 1960, quando nasci, nem uma aberração da natureza nem fruto de alguma experiência científica antecipatória do futuro. Assim mesmo, tive duas mães, o que me faz uma criatura um quase nada rara. A segunda, mãe afetiva. Afetiva, não adotiva. Sempre desfrutei da companhia de minha mãe biológica e, de certo modo, ainda desfruto, apesar de ela não transitar mais pela vida — por esta vida, dirão os crédulos.

Célia chegou a minha casa antes de eu nascer. Foi costurar para minhas irmãs, uma com quase dez anos, a outra beirando os cinco. Naquela época, as famílias confeccionavam suas roupas. Qualquer mãe prendada cosia para os filhos e, se não fosse talentosa ou carecesse de tempo, contratava uma ajudante. Foi o caso. Mamãe, boa de costura, mas atarefada com o trabalho de diretora de uma escola de economia doméstica, ao ver suas meninas crescendo, não pensou duas vezes e chamou a Célia para fazer-lhes uns vestidos. Seria trabalho para uma semana, Célia ficou conosco quarenta anos. Morreu em nossa companhia.

Solteira, Célia teve um fortuito namorico, um flerte com um radialista que lhe ofereceu música num programa vespertino: “Essa vai para a Rosa da Bonsucesso”. Célia Rosa, moradora da rua Bonsucesso. Sem talento para o matrimônio, dedicou-se a meus pais, a mim e a meus três irmãos — com o tempo ainda teve fôlego para os netos de meus pais e para o seu sobrinho. Foi costurando roupas novas e reformando as velhas enquanto minhas irmãs completavam onze, doze, os emblemáticos quinze anos, até que a indústria tornou inútil uma costureira no domicílio, pondo tudo pronto e à venda na butique da esquina. Nesse momento, Célia deixou a figura de costureira para ocupar um espaço indeterminado. Uma vizinha, Celina, gracejava: em Passos, éramos a única família com uma governanta. Célia nunca foi governanta. Intuo o que pode ter significado para meus pais e irmãos, mas não posso afirmar com certeza, não com a mesma com que afirmo que para mim ela foi uma segunda mãe.

Uma segunda mãe, por definição, entra em confronto com a primeira. Haydée, apesar de todos os seus medos, me jogava para a rua, apostava na minha independência, sempre com o olho em meu futuro. Célia, sem a preocupação de me educar, oferecia o colo. Minha mãe biológica me colocava de castigo, a outra me tirava ou entrava nele e o transformava num tempo amistoso, bom de ser vivido. Nas viagens sem fim de meu pai, nas tormentas barulhentas caídas do céu, nos dias de crime na cidade, Haydée pedia minha mão, meu conforto, alterava, desse modo, nossos papéis e passava a ocupar o lugar de filha. Célia parecia não temer nada, nenhuma tristeza a atingia: doação em estado de absurda pureza.

Vivendo assim entre dois modelos tão distintos, eu poderia ter enlouquecido de vez, mas não, acho que não atolei na lama da sandice, sequer tornei-me um inseguro em grau doentio. As duas mães me deram a chance de conviver, desde cedo, com carinhos de forças opostas, que, ao puxarem a brasa cada uma para o seu lado, abriram uma pequena greta no terreno de minhas emoções. A fenda é um bom lugar a partir do qual um escritor pode vir à luz — especulo, aqui, fora de contexto e insinuando um tímido segundo sentido à frase. 

A outra figura feminina acomodada em meu altar da maternidade me transformou de que em que, não sei, mas eu seria outro caso fosse filho de mãe única. Digo isso ou só isso. Não é pouco. Na realidade é muito. 


13.7.15

Antes de eu ir pra Nauru

Ao Belmiro, amigo que costuma transver o mundo.

No trem, um pregador diz que já havia sido traficante e assassino. Escrevendo certo por linhas tortas, Deus e Cristo o salvaram. Até aí uma conversa conhecida, mas ele acrescenta que fugiu do tráfico, da favela, foi viver longe de onde nasceu e, ao voltar, foi pego e levado para o alto do morro. Quando iam despachá-lo para o nunca mais, resolveu dizer que ninguém morre duas vezes, que eles já haviam matado seu corpo antes e, naquele momento, não conseguiriam matar seu espírito. O fato de ele estar no trem, expondo sua vida, era a prova cabal de um milagre. Imagino que, na viagem entre a Central e o subúrbio carioca, naquele dia e noutros, o pregador conquiste muitos devotos. Como estamos todos à deriva, uma salvação a módicos —  quase nunca tão módicos — dízimos nos cai bem.

Bel, que me contou tal história, emenda mais outra, essa similar a uma vivida por mim. Ele andava pelas imediações da praça Tiradentes quando um sujeito, assim do nada, lhe perguntou se ele já havia saído de lá. De lá? É tudo obscuro, mas a intimidade da abordagem fez Belmiro pensar que a memória o estava traindo, que estava diante de alguém com quem já convivera. Ao fim e ao cabo, o “parceiro” deu um perfume a meu amigo, disse que era para a esposa e que não lhe cobraria um centavo. Depois pediu uma ajuda. O perfume — apenas uma essência adquirida numa das lojas da Saara, a Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega — saiu por um preço muito acima da sua qualidade. Na minha história, em vez de perguntar se eu havia saído de lá, o trambiqueiro perguntou se eu ainda ensinava lá. Como dei aulas alguns anos na Zona Norte, numa faculdade frequentada por muitos alunos que viviam da informalidade e outros, segundo corria a boca pequena, da ilegalidade, o perfumista bem poderia ter sido meu aluno. Na lábia pura, vinte contos meus, vinte do Bel, grande malandro.


1752, galo na cabeça. (Foto do autor.)



Em Homenagem ao Malandro, imortalizado por Moreira da Silva, Chico Buarque dizia que o malandro havia acabado, substituído pelo engravatado com emprego, retrato na coluna social e tralha e tal. Vê-se, no perfumista da praça Tiradentes, um resquício desse tipo em extinção. Num mundo em que se tira o tênis do outro com revólver ou faca — não raro usados para dar cabo da vida do dono do tênis a troco de nada —, afanar vinte pilas do inocente na conversa mole é uma dádiva. E, melhor ainda, sem que a polícia perceba, o que seria um problema e tanto, pois sabemos como é a mira dessa polícia. Não só a mira, mas também o dedo podre, que não perde a chance de transformar uma pequena contravenção num grande negócio. (Nem preciso dizer para quem é bom o negócio.)

Na minha utopia pessoal, iriam por terra todas as proibições. Tudo que não fosse roubar, violentar, sequestrar, discriminar e matar (mais alguma atrocidade que me escape agora) seria permitido, e a justiça cuidaria de condenar os malfeitores, baseada no fato de que sempre há os que vivem de passar a perna nos outros. Os médicos atuariam orgulhosamente com seu diploma para interromper uma gravidez não desejada, uma vez que, com orgulho, devem atuar em tudo que é da medicina. Em contrapartida, a igreja trataria de convencer seus fiéis de que, independente de a lei permitir, eles deveriam agir sob o preceito da religião. Cada um no seu quadrado. Os pais, quando seus filhos saíssem à noite, teriam a tranquilidade de saber que os excessos dos meninos não lhe custariam a vida numa guerra entre gangues de traficantes ou entre polícia e traficantes. Por que estou falando tudo isso? Uma especulação firmada na minha crença de que muitas proibições acabam por substituir o malandro folclórico por um bandido de fato perigoso. Um delírio a partir da nostalgia de dias menos violentos, o que deve coincidir com o tempo em que Don Don jogava no Andaraí (música de Nei Lopes cantada com aquele jeitão de malandro das antigas do Zeca Pagodinho).

Não posso me alongar e ainda não disse o que tenho a dizer. A oferecer, na verdade. Preste atenção, é uma oportunidade única. Viajarei para Nauru, de onde importarei guano, um fosfato de cálcio composto pelo cocô de morcegos e aves — pré-históricos, segundo alguns. Pois bem, tenho um bilhete premiado da loteria federal no valor de um milhão de reais e estou sem tempo de buscar a grana. Sendo assim, vendo o bilhete — 1752, galo na cabeça — por reles cem mil. O interessado pode fazer um depósito em minha conta do Banco do Brasil e aguardar o talão, que enviarei em carta comum, com fé cândida no funcionamento de nossos correios. Pegar ou largar.