30.1.21

Um encontro com Stein e Lebowitz

Li “A autobiografia de todo mundo” (Everybody´s Autobiography), de Gertrude Stein, numa edição da CosacNaify. É um diário? Um ensaio? Uma crônica de viagem? É tudo isso. Se eu fosse Funes, o memorioso de Borges, decoraria as mais de trezentas páginas da autobiografia que, sendo de todo mundo, é minha e de quem passe os olhos por ela. Escrito com enorme liberdade sintática — me pareceu muito bem transcriada por Júlio Castañon Guimarães —, o livro conta o cotidiano dessa escritora americana que vivia em Paris, dando ênfase ao tempo em que ela, depois de estar trinta anos ausente, volta aos Estados Unidos para uma série de conferências. Destas não ficamos sabendo nada ou quase nada, mas das viagens de trem, de carro ou de avião (era a primeira vez que ela voava), dos hotéis, da comida, dos encontros, do encantamento com a paisagem, sim.

Stein confronta os estilos de vida americano e europeu, fala de artes plásticas, enumera personagens famosos que circulam à sua volta, Picasso, Chaplin, outros tantos. O permanente trânsito entre dentro e fora, entre pensar e viver, talvez seja o ponto central da obra. Tudo que Stein faz qualquer um de nós faria; e tudo que conta nós poderíamos contar. A diferença é que ela escreve, e escreve como se pensa, não como se fala ou até mesmo como se escreve. O livro é, enfim, uma reflexão sobre a escrita que quer dar conta do pensamento em sua amplitude, circularidade e imperfeição, ou seja, quando nasce.  

Registro uma passagem. No vaivém pelos Estados Unidos, Stein passa por Virgínia, um lugar muito vazio. Alguém comenta que o pai, vivendo naquele estado, acorda, senta-se em numa cadeira e observa os pinheiros crescerem. Isso é tudo e é assim todos os dias. Stein acha isso muito interessante — interessante é a palavra mais usada por ela.

Estando, ainda em Virgínia, com pessoas mais jovens, a escritora nota como são conservadoras e reflete sobre uma delas: “Ela também era virginiana quer dizer acreditava no que acreditavam quando os virginianos eram virginianos. Acreditavam que viam a árvore quando a árvore fora substituída por um edifício, ver a árvore poderia ser interessante se fosse possível tornar isso interessante mas para essa geração que ainda vê a árvore quando foi substituída por um edifício e como esse edifício não é feito de madeira pode não ser interessante.” Não me lembro de ter visto o entrechoque entre conservar e progredir — tomo conservar e progredir tanto no sentido econômico quanto no ideológico e afetivo, que a educação familiar procura perpetuar — escrito de forma tão original.

Vi “Faz de Conta que NY é uma Cidade” (Pretend It's a City), documentário de Scorsese sobre Fran Lebowitz. Ela é escritora? Sim, de duas ou três coletâneas de crônicas escritas na juventude e de um romance inédito que, segundo ela, vem sendo trabalhado. Apesar da produção escassa, é figura importante no ambiente cultural e político de Nova York, cidade à qual chegou, no final dos anos de 1960, com dezenove anos. Nos sete episódios disponíveis na Netflix, conhece-se uma mulher de humor refinado, sarcástica, bibliófila — mantém em seu apartamento dez mil livros —, dona de uma visão bem peculiar sobre a contemporaneidade.

Ela se irrita por ser atropelada por jovens e não jovens que, concentrados em seus celulares, andam distraídos pela rua — e isso não é interessante, diria Stein. Não é só desdém, Lebowitz dispensa computadores, celulares, micro-ondas; sequer máquina de datilografar ela usa. Dei um exemplo ao acaso, o mais trivial; Lebowitz vai além. O escritor César Cardoso leva em seu canal no Youtube o espetacular “Poesia prato do dia / Poesia para todo dia”, projeto no qual lê diariamente poesia, e dedicou um programa a Lebowitz, que não escreve poesia. De lá trago tiradas afiadas dessa francoatiradora. “A vida é algo que acontece quando você não consegue dormir.” “Pergunte ao seu filho o que ele quer comer apenas se ele for pagar.” Ah, sim, Fran aceitaria ser prefeita de Nova York desde que pudesse trabalhar depois das 19 horas. A cidade manteria um administrador diurno e deixaria a noite com ela.

Esteja certo ou não, Stein ecoa em Lebowitz. Para além da sagacidade, ambas refletem sobre o tempo, ainda que de forma distinta. Por estar entre as duas guerras e na ressaca da Grande Depressão, Stein parece obrigada a acreditar no futuro; Lebowitz, nascida depois da Segunda Guerra, mostra-se cética em relação ao que sucederá a um presente cheio de quinquilharias eletrônicas, com pouca interação humana e propenso a acabar com as livrarias de rua e com a própria leitura.

Stein antes, Lebowitz depois — quando a primeira morreu, a segunda ainda não havia nascido — têm em comum o fato de se ocuparem com qualquer assunto sem o menor pudor. Se aqui e ali demonstram ignorância, preconceito, nunca deixam de olhar o mundo com curiosidade e absoluta certeza de que elas podem e são fundamentais para compreendê-lo.

Stein se considerava gênio, não duvido de que Lebowitz também. Sendo ou não, o que posso dizer é que, flambadas no ego, as duas são deliciosamente instigantes.

18.1.21

Leitores reclamam de falta de limpeza no Terminal Rodoviário

Joca precisava chegar a Guaxupé no final do dia. Haviam dito para ele que não existia viagem direta, que deveria tomar um ônibus até Ribeirão Preto ou Alfenas e de lá ir para Guaxupé. Uma viagem que de carro levaria uma hora e meia, por aí, de ônibus se transformaria sabe-se lá em quanto tempo. Oito horas? Joca tocou na mochila para ter certeza de que o livro estava lá. O livro.
Renatinho, por sua vez, iria a Belo Horizonte. Comprara passagem para o meio-dia, seu compromisso era na próxima manhã. Viajaria com tempo. De todo modo, precavido, chegou à rodoviária bem cedo, com duas horas de antecedência. Renatinho tocou na mochila para ter certeza de que o livro estava lá. O livro.
O terminal rodoviário não é muito grande, e em um dia de movimento inesperado, Joca e Renatinho acabaram se sentando no mesmo banco.
Joca tirou o livro da mochila.
Renatinho tirou o livro da mochila.
O livro de Joca era de um autor europeu.
O livro de Renatinho era de uma autora nacional.
Procurando ser discreto, Joca esticou os olhos para ler o título do livro de Renatinho.
Como Renatinho fazia o mesmo, os olhares se encontraram. Ficaram um pouco encabulados. Um e outro ficaram bem encabulados.
Joca lia um livro de Ian McEwan, Na Praia.
Renatinho lia um livro de Raquel de Queiroz, O Quinze.
Joca não conseguiu ver que livro era que Renatinho lia.
Renatinho não conseguiu ver que livro era que Joca lia.
No entanto, o encontro do olhar de um com o outro não deixava margem para que não se dissesse alguma coisa. Era inevitável, era obrigatório até.
Foi Joca que se adiantou. Ele disse:
— Como está sujo o terminal. E Renatinho quase repetiu a frase:
— Sim, como tudo está tão sujo.
Joca levantou-se, foi ao banheiro. Renatinho levantou-se, foi à lanchonete.
Depois, sentaram-se em bancos diferentes e foram ler seus livros.

Joca não chegou a tempo a Guaxupé. Renatinho chegou com tempo de sobra a Belo Horizonte, mas, ao sair para o compromisso, desistiu dele.

Três meninos de Belfort Roxo

Acordei em mais um dia quente na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade é um caos. O estado é um caos. O país, se não é, está um caos.

Reagi cantarolando “Fantasia”, de Chico Buarque. A música convida para uma pequena utopia ao dizer: “Se de repente / a gente distraísse / o ferro do suplício / ao som de uma canção”. Estribilha: “canta, canta uma esperança / canta, canta uma alegria / canta mais”. E completa: “Preparando a tinta / enfeitando a praça / canta, canta, canta, canta / canta a canção de glória / canta a santa melodia.” Ouvi muitas vezes, repetindo a dose como se fosse uma seringa de heroína, uma talagada de cachaça, um cigarro, de maconha ou não, tragado no limite dos pulmões.

Não que eu tivesse esperança de que o calor diminuísse, mas, como o viciado, gostaria de, por algum instante, me ver livre dessa sensação de que o caos irá nos cozinhar, nos estorricar, nos tornar inviáveis. Nós, os seres humanos. A nossa vidinha passageira.

Fora a ira que me acomete aqui e ali, o que sinto é equilibrado e político. O calor e o caos irão passar, o primeiro temporiamente, pelo menos por enquanto, antes da efetiva catástrofe ambiental; o segundo para sempre, custe o que custar — e custará muito.

Para os familiares, em particular as mães e avós de Lucas Matheus, de oito anos, Alexandre da Silva, de dez, e Fernando Henrique, de onze, — três meninos que saíram, no dia 27 de dezembro, para brincar na quadra perto de onde vivem em Belfort Roxo, no Castelar, e estão desaparecidos até hoje —, pode ser que o calor e o caos não passem. Na busca das crianças, três homens foram mortos pela polícia; um, levado pelas famílias dos garotos à delegacia, foi acusado de ser o responsável, o que não se confirmou; um ônibus foi incendiado; a avó dos primos Lucas e Alexandre, depois de correr atrás de uma pista do paradeiro deles, se envolveu em um acidente automobilístico de consequências leves. O caos, além do calor.

Não se descarta que essas famílias venham a vestir o luto absoluto, que já cobre inúmeras moradoras das áreas mais desassistidas, aquelas em que o tráfico e a milícia acham por bem coabitar, aquelas em que a polícia não vê problema algum em entrar atirando e matando inocentes em prol do combate ao crime.

A estatística da violência — e outras igualmente indignas — engorda no Brasil. Por aqui, o ferro do suplício não se distrai com nenhuma canção.


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Se quiser, ouça a música do Chico aqui.

4.1.21

2001: Uma odara no terraço

Caetano Veloso terminou sua segunda e última live de 2020 desejando ao público um excelente 2001.

Caetano está velho? Velho, com certeza; gagá, nem um pouco. Um homem de 78 anos tropeça física e mentalmente, ora essa! O velho cantou quase trinta canções sem titubear. Sua voz é ainda cristalina, e ele dá conta de um repertório de um compositor pleno e compromissado com o tempo em que está, e quem está por tanto tempo no tempo em que está, sem se tornar um nostálgico empedernido, é, como o tempo, atemporal. Caetano é.

Seu violão não é nenhuma maravilha, soa bonitinho e, em Terra — a música, que está no coração do documentário “Narciso em férias” (Renato Terra e Ricardo Calil), amarra as pontas do que o baiano tem falado recentemente — esteve abaixo de todo o resto. Caetano sempre disse que não é músico; músico é o Gil. O irmão de Bethânia é, segundo ele mesmo, um amador, o que não o impede de ter feito melodias extraordinárias (não falo do letrista, pois o assunto é o músico), de as ter cantado e tocado extraordinariamente. Caetano é um gênio.

Gênio controverso, que numa hora diz odiar o socialismo e noutra diz estar muito interessado em teóricos marxistas atuais. É um intelectual talvez igualmente amador, que transita pela avenida de suas paixões e, indiferente a nosso julgamento sobre ele e suas ideias, trabalha as inquietudes que o movem. Ser amador, no caso do pai dos três meninos, areja todo o seu trabalho, na música, na escrita, no cinema.

Por que esse velho, “rei dos animais” que deixou “a vida e a morte pra trás”, nos desejou um ano bom por nós já vivido e enterrado e que hoje não passa de uma mancha de alegria e tristeza na memória?

Em 2001, o país dava pinta de que assinara um documento de compromisso duradouro com a democracia e deixaria apenas no registro histórico as exceções autoritárias. A partir de então, traria à cena o enfrentamento das questões realmente prementes, entre elas e talvez as mais importantes, a disparidade e a concentração de renda. O PSDB, na época um partido de centro-direita, civilizado e com boas cabeças, conseguiu deter a inflação, esse desacerto da economia que atinge com mais força os pobres — para os economistas, a inflação é um imposto regressivo, portanto pesa mais sobre os pobres do que sobre os ricos. O PT — que, para ocupar o poder em seguida, teve de caminhar da esquerda para o centro —, apoiado também em boas cabeças, radicalizaria as políticas públicas visando a justamente reduzir as desigualdades. Enfim, os extremos eram ocupados por dois partidos próximos do centro (e, por conta do pragmatismo político, também do Centrão) e nem tão distantes um do outro. Esse “arranjo” da democracia durou pouco, e o impeachment de Dilma Rousseff, estimulado por um PSDB cada vez mais à direita, foi seu velório e cremação. Das cinzas a democracia não tem renascido.

Iniciado numa sexta-feira, 2001, com suas trezentas e cinquenta e cinco manhãs e noites, foi um ano de sufoco mundial, parecido com o atual, embora não estivéssemos acossados por um vírus, mas pelas mãos desumanas da cobiça — foi o ano do ataque às Torres Gêmeas e da eleição do little Bush, presidente que deu voz e arma para a diplomacia da vingança. Mas também, como todo e qualquer ano, 2001 foi cheio de acontecimentos da vida: nele morreram Jorge Amado, Cássia Eller e o titânico Marcelo Fromer; prenderam, na Colômbia, Fernandinho Beira-Mar; o Brasil entrou no mundo do racionamento de energia, um sinal do desequilíbrio ecológico. 

Em 1968, jogando-nos para a frente, Kubrick — o cineasta apontado por alguns como responsável pelo truque cinematográfico que nos faz acreditar na chegada do homem à lua — fez “2001 - uma odisseia no espaço”. No filme, em 2001, buscar-se-ia o monolito primordial, a pedra filosofal, navegando no espaço da mesma forma como os gregos navegavam no mar. Caetano, jogando-nos para trás, quer menos, quer, ao refazer o caminho dos últimos vinte anos, evitar os erros cometidos e nos dar um 2021 diferente deste que nos avizinha. Como o espaço é grande demais, Caetano talvez pense que no redivivo 2001 se possa ficar odara no terraço. E que o terraço entusiasme a praça; a praça, a cidade; a cidade, o estado; o estado, o país. Enfim, depois de recuar até 2001, 2021, um ano também com início numa sexta-feira, seria o momento de “ficar tudo joia rara, qualquer coisa que se sonhara”. 

Bem que merecíamos.


PS: Ouça Odara.