29.5.17

O som dos destroços

Totora, Bolívia. Foto do autor. 
Escrevo esta crônica a partir da perda de uma foto, aquela 3 x 4 que o tio Raul me deu. Tinha uma dedicatória: “A mi querido sobrino Alexandre, un abrazo fuerte y apretado de su tío Raulito”. As palavras, se não eram essas, soavam mais ou menos assim e foram escritas em espanhol — nesse espanhol castiço, que não é meu, esclareço, é de meu irmão Gonzalo, a quem pedi socorro enviando-lhe um arremedo da frase em português, na hora transformada por ele nesta tão boliviana.
Tio Raul era, em meados da década de 1980, a única pessoa em Totora, pequeno município boliviano, na região de Cochabamba, que tinha, graças a uma geladeira a gás, cerveja gelada. Depois de um dia inteiro bebendo ora chicha, ora cerveja quente, papai se lembrou do tio Raul. Papai? Na Bolívia? Vejo-me obrigado a recuar um pouco, a soldo da clareza e em seu benefício, leitor.
Eu e Carlos, um amigo chileno, fomos à Bolívia com o propósito de passear por algumas cidades até chegar a La Paz, onde encontraríamos o Gonzy e de lá seguiríamos para o lago Titicaca, na divisa entre a Bolívia e o Peru. Não vem ao caso, a este caso confuso, mas a parte de chegar ao Peru não se concretizou. Tomávamos, a cada noite em La Paz, um porre e, na manhã seguinte, não tínhamos saúde para a viagem. Foram quinze dias de farras alcóolicas memoráveis.
Mal chegados à Bolívia, ainda na estação, encontramos um amigo boliviano que estava com outro boliviano, desconhecido e mais velho que a gente. O “coroa” nos contou que saíra do país havia uns vinte anos, e, desde então, nunca voltara. Ele iria visitar a família. Onde? Em Totora, claro. Ainda na plataforma, eu e Carlos aceitamos o convite para o réveillon da volta do filho pródigo à Bolívia.
Na cidade, aquele que sumira no mundo e cujo nome me escapa, ao nos apresentar ao irmão, na casa de quem ficaríamos hospedados, disse que eu e Carlos éramos seus filhos. (Entenderam por que falei em pai?) Que ator! Que ficcionista! Como eu não falava nada de espanhol, e o Carlos era chileno, papai inventou que Carlos namorava uma chilena, “maldita chilena”, reforçou, mostrando indignação com o fato de um boliviano se envolver com aquela gente que roubara o mar de seu país. Por esse namoro, Carlos falava com desenvoltura e sotaque do inimigo, enquanto eu, o caçula e seu xodó, um brasileirinho típico, não fazia esforço algum para aprender a língua paterna.
A empatia entre mim e tio Raul, tão logo tomei-lhe a bênção, foi tão grande que o velho comerciante, ao contrário do que esperávamos, não cobrou pelas cervejas. E ainda me deu a foto autografada — a foto que perdi. O que é roubar o mar diante de uma encenação como aquela? Maldito fui eu.
O povo de Totora, tio Raul em especial, gabava-se de a cidade ter sido rica, prova disso era que, no início do século XX, havia, espalhados por suas casas, onze pianos. O instrumento figurava como o símbolo de uma ostentação, de uma ostentação sepultada no tempo. O vilarejo (não passava disso) não tinha mais nem os pianos nem nada que lembrasse a antiga riqueza.
Lembrei-me de Totora e consequentemente de tio Raul e da foto enquanto via, desatento, um documentário sobre a Síria. Nele, ao visitar Aleppo, o repórter entra em uma das poucas casas que ainda mantinham a estrutura intacta. Pensei ver, entre os móveis, um piano. Um piano na guerra. O piano entre os destroços. O piano.
Polanski dirigiu “O pianista”, baseado numa história real passada na Polônia tomada pela Alemanha. Quando os russos, já no fim da guerra, começam a expulsar os alemães, o músico judeu, depois de se esconder faminto num edifício em ruínas, é encontrado por um oficial nazista que lhe pergunta qual a sua profissão. Pianista, ele responde. O militar — homem entediado, no qual uma dose de humanismo sobreviveu ou foi revivida naquele momento em que, talvez esperançoso, se vê voltando ao convívio de sua família, em período de paz — pede ao judeu que toque no piano empoeirado que resistiu à guerra. Władysław Szpilman toca a “Balada No. 1 em G Menor, Op. 23”, de Chopin. A música o salva.
Não tenho ideia de como Totora estará hoje, deduzo que tio Raul não está mais entre nós — como não está a foto, que, enganado, me deu como prova de amor. Além disso, arrisco dizer que onde houver um piano, haverá a possibilidade de revitalização. Foi assim em Varsóvia, espero que seja assim em Aleppo. A decadência de Totora foi medida em pianos perdidos.
Totora, Bolívia. Foto do autor.

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