Motoqueiros
Não gostam de engarrafamento. Preferem colocar a cabeça a
prêmio a usar e desgastar seus capacetes. Conversam com quem vai na garupa e,
se não há ninguém, falam sozinhos. Assobiam sofrências em ritmo lento,
incompatível com a pressa com que costuram no trânsito. Na dor, gemem como o
cano de descarga de suas máquinas.
Anotador do jogo do bicho
O que anota os jogos da turma lá perto de casa é um senhor
encurvado. Ele arrasta o corpo como se os bichos que oferece pesassem sobre
seus ombros. Fuma, fuma desesperadamente. Por estar atento ao celular, no qual registra
as apostas, não olha para a frente. O porteiro do prédio em cima da loja de
hortifrutigranjeiros chega religiosamente entre as seis e as seis e dezoito da
manhã, quando saio para a caminhada. Os três que vivem pendurados no balcão do
pé-sujo não são pontuais, ou, sei lá, jogam muitas vezes e, por isso, em vários
momentos estão sentados ao lado do anotador. O senhor do jogo do bicho recebe
todos do mesmo modo, encurvado, os olhos fixos na telinha. Talvez só conheça a
voz de seus fregueses, se é que se pode chamá-los assim.
Atendente do mercado
Arriscaria a dizer que ela mora longe do trabalho.
Arriscaria mais: seus filhos passam parte do dia na escola – quando não há
tiroteio – e outra em casa, aos cuidados de ninguém, quer dizer, uns cuidando
dos outros. Afirmaria ainda que a atendente do mercado é tranquila, quase digo
feliz, mas seria exagero. Ninguém é feliz, sabemos disso. Não seria ela a
exceção.
Seguranças
Primeiro é preciso saber se fazem parte de uma milícia, que
nem sempre é uma estrutura organizada, nascida nas barbas do Poder. Os
seguranças do meu bairro são, no mínimo, um bacalhau, um jeitinho que os
comerciantes dão para contornar a impossibilidade – ou a má vontade – do Estado
em proteger o baixo clero do capitalismo. Me desculpo pela sociologia de
esquina, vou desembarcar dela, meu negócio é outro.
Um dos seguranças tem o nome daquele jogador que cai muito –
além de promover bacanais, infringir os códigos ambientais na região de Angra
dos Reis e ter cara de quem está debochando de nós, o que de fato está. O
homônimo do boleiro não parece nem ser dos que caem – acreditam os comerciantes
do bairro que ele derrube, é um zagueiro pelo qual a bola passa, o atacante,
não – e, se participa de bacanais, é de algum de pouca pompa, digamos que de
circunstância. Tem os olhos tristes e enfezados.
Outro tem cara do tio que não deu certo na vida. Sempre está
com uma lata de refrigerante nas mãos e encara as pessoas certo de que aquele
olhar é suficiente para impedir qualquer atitude suspeita: roubo, assédio,
escândalo. Como disse, tem cara do tio perdido, que vive de favor na casa da
mãe. Daqueles que chamaríamos num canto para lhe dar um toque assim: “Ô, velho,
procure ajuda”. Tios desses costumam perder as estribeiras quando chamados à
realidade.
Bela
Meu bairro – imagino que aconteça em todos os lugares, até
mesmo em cidades nem tão grandes – viu aumentar o número de moradores de rua
nos últimos tempos. A leva atual não parece ser de quem não conseguiu – ou não
quis, pois esses existem – viver dentro das possibilidades disponíveis:
emprego, quando há; bicos, quando se descola; família, quando se tem. Os novos estão
sequestrados pelo vício. São os cracudos, zumbis que não amedrontam, mas nos
causam dor, pena, sensação de impotência. O fato é que são na maioria jovens,
e, sendo jovens, mesmo abatidos fisicamente, estão com a libido acesa. É aí que
aparece a moça miúda, do mesmo modo chupada pela droga, mas transformada em deusa
pelo infortúnio. Ela sempre troca o moço igualmente esquálido com quem anda de
mãos dadas pelas calçadas, quando não pelo meio da rua.
Jovem poeta
Ele não sai de casa, não tolera gente. Escreve movido por nada.