Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann leva o jovem Hans
Castorp a uma visita ao primo, Joachim Ziemssen, internado para tratamento da
tuberculose em uma clínica nos Alpes suíços, perto da cidade de Davos — hoje
ponto de encontro anual dos muito ricos com representantes de governos, alguns desses
nem tão ricos assim. Acontece que Castorp entra e não sai. Quer dizer, nesse
momento, vencidas mais de quinhentas das oitocentas páginas, ele, que enfim
também está tuberculoso, não deixou o sanatório, embora seu primo, num arroubo,
o tenha feito. Castorp é descrito assim: “Não era um gênio nem um imbecil, e a
razão de evitarmos para sua qualificação o termo ‘medíocre’ reside em
circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência, e quase nada com sua
personalidade singela”. O que importa é que esse romance de formação (desse,
desse, sejamos sinceros, desse medíocre que passa a lutar contra a morte,) explora
inúmeras dualidades. Fala-se da vida ali em cima em contraste com a lá de
baixo, a do doente em contraposição à dos saudáveis. Ao conhecer os
intelectuais Settembrini e Naphta, Castorp entra em contato com visões de mundo
opostas, sem nenhum ponto de interseção. O primeiro, um italiano crédulo da
humanidade, da ciência, do progresso (à moda europeia); o segundo, um judeu que
se tornou noviço jesuíta sem, contudo, por conta da tuberculose, chegar a
diácono. Entre os dois ocorrerão embates intermináveis – nas quinhentas
primeiras páginas, não há notícia de que se tenham transformado em inimigos. Naphta
defende que a ciência deve estar sob o jugo da religião, chegando inclusive a
duvidar de que a terra não seja o centro do universo, saber esse que custou a
vida de muitos cientistas. Entende a guerra como um desígnio de Deus, em
contraposição ao outro, um pacifista. Eu achava que essa gente que aposta em
armas, desdenha da ciência, usa a religião como estratégia de dominação era
coisa do passado, mas a verdade é que, cem anos depois da publicação do romance
(na década de 1920, entre as duas grandes guerras), ainda jogamos a ciência
contra as cordas, apesar de tantos avanços, que nos levaram à lua, que curaram
muitas doenças (a tuberculose, por exemplo), que produziram armas letais
precisas – o que tanto agrada os poderosos beliscosos, quer dizer, belicosos. Um
século de passadas largas e pelo jeito patinamos no mesmo gelo.
Se o mundo é assim, também não é tanto assim. Não consigo me
lembrar o que me motivou nem como consegui o número, mas um dia liguei para o
consultório do Guinga, que, já músico conhecido, parceiro de Aldir Blanc e
Paulo César Pinheiro, ainda atendia como dentista. Sei que da nossa conversa
pintou um convite para assisti-lo no Jazzmania, casa de show que não existe
mais. Fui, obviamente. Ao final da apresentação, conversei com ele e dei-lhe de
presente um exemplar de "A palavra em construção", primeiro livro de que
participei, uma coletânea de contos do grupo Estilingues. O Guinga é a simpatia
em pessoa. Corta. Alguns anos depois, vou a um show dele com o Hermeto Pascoal.
Quem não foi, morra de inveja e imagine a beleza daquele encontro. Terminado o
espetáculo fui eu puxar prosa com o Guinga de novo. Ele então me perguntou se
eu tinha sacado o que acontecera ali. Do que ele estava falando? Hermeto, com
seus improvisos, tentara derrubá-lo o tempo todo. O ex-dentista não estava
chateado, ao contrário, estava radiante por ter enfrentado o desafio proposto
por um gênio. Hermeto, Hermeto, você me ofereceu os melhores shows a que já
assisti em minha vida.
Escrevo uma crônica da falta de assunto; pior, sem direção. Não vou me desculpar com o leitor, já que, tendo chegado até aqui, não se contentará com um simples “errei, perdoa, vai”. Como tempo é valor, ou tento corrigir a derrapada ou esclareço o real motivo de estar tão disperso, embriagado até. Opto pela segunda. Sabe o que é, não quero carnavalizar minha alegria vingativa, pois acho horrível esse sentimento. Todavia, é com ela que tenho convivido desde o último 11 de setembro, quando as torres dos candidatos a ditador vieram abaixo, abalroadas pelo teco-teco da justiça.
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