7.9.15

No lombo do Brasil


Acomodo-me no vagão nem luxuoso nem simples do trem que me levará do interior de Minas a Florianópolis ou, via Pantanal, de Quixeramobim ao último povoado ocidental do extremo sul. Mas não existe essa possibilidade. Poderia existir, não fosse a falsa modernidade à qual nos agarramos ao longo do século XX e que sepultou os trens, sem que ninguém soubesse ou saiba quem garfou os trilhos.
Estou bem instalado no trem inexistente, e de sua janela num instante passo a contemplar o sertão árido, o resto de mata atlântica, o cerrado. (O Pantanal, preso num poema de Manoel de Barros, não pode ser mais visto, apenas lido, mas lemos pouco.) E sobe montanha e desce montanha. E margeia rio e se afasta de rio. Café com pão, café com pão. Bandeira, sedento de Brasil, invade o vagão e me sequestra.
No Brasil ninguém diz “eu digo”, ninguém diz “eu roubo”. (Tampouco eu.) Aqui, a esquerda benze meia dúzia de empresários: mais-valia pura pra quê se cinco letras em forma de banco abastecem os ungidos com dinheiro barato e pedalado? Aqui, a direita tem nostalgia da palmatória, mas investe mesmo é em arma pesada e sonha com um sistema prisional lucrativo: menino preso é capital sadio e, por isso, bom reprodutor.
O trem parece andar fora dos trilhos. Virge Maria, que foi isso, maquinista? Nada de susto, ele avisa pelo sistema de alto-falante, estamos apenas passando por cima de um rol de Adílios. No trem da Central, continua em tom muito formal, a operação de passar sobre o corpo de Adílio Cabral dos Santos ocorreu por necessidade: Quem seria o doido de tumultuar a vida daquele que precisa chegar ao trabalho na hora? Apesar do improviso, a profanação foi um ato de humanismo, ápice da consciência coletiva. Agora — a voz soa bonita e cheia de si —, produzimos Adílios em prostibolatórios de última geração e os jogamos já mortos sobre os dormentes. O trem que conseguir esbarrar no menor número deles ganha um prêmio. Qual? Dizer que foi ideia do outro. No Brasil gostamos de apontar o dedo e dizer “foi ele”, “foi ela”. Precavidos, não afirmamos coisa alguma defronte do espelho. Quanta sabedoria a desse homem!
O trem-bala já contornou o Chuí e, não tarda muito, desceremos em Manaus para, de acordo com o cardápio, comer carne de índio tucunaré. Sou repreendido pelo vizinho de assento: Não seja inocente, o índio é haitiano ou guianense, ninguém sabe ao certo. E não vem ao caso. Nunca vem ao caso, e ninguém jamais sabe ao certo. O tempero vai ser nativo, corre de boca em boca, para dar sabor à nossa eterna vingança pelo que fizeram ao bispo Sardinha.
Há pela frente o Pico da Neblina. O trem não está preparado para tamanha escalada, mas uma voz prática convoca homens de fome eterna para empurrá-lo até o cume. Lembro-me de Fitzcarraldo, o lunático filmado por Herzog, cineasta idealista que fez subir um navio pela montanha, uma linda imagem à custa da vida de outros famintos nativos dessas mesmas bandas amazônicas. Agora, são índios e negros — outra vez escravos, se é que algum dia deixaram de sê-lo — os que, tropeçando em Adílios, cumprem a missão. Ninguém poderia imaginar que ainda houvesse relho, chibata e cipó de aroeira, mas eles estão lá, troando no lombo de quem nunca mandou dar — tamanha violência cujo efeito colateral inesperado é deixar cada um de nós nu e, com isso, nu e transparente o próprio Brasil. Um rápido olhar para os lados é suficiente para se perguntar: onde foi parar a África nos machos, a Europa nas fêmeas? Quem lavou nossa miscigenação com água oxigenada e óleo de peroba?
Para cruzar o pico e depois descer, o governo empenhou no orçamento do ano que não vem dinheiro insuficiente e desnecessário, diz uma voz que não é a do maquinista, sabe-se lá se de um Adílio, de um Herzog, de um Deus dessas tantas butiques da fé espalhadas pelo Brasil. Outra frase brota no ar: No alto do morro, passa boi, passa boiada, só não passa solução já pronta para tormenta encomendada. Quem diz é ele, o do lado ou aquele mais adiante, mas, segundo ele, fui eu quem disse.
Em terras tropicais, odiamos o outro.















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