3.11.13

Herança miúda

Em março de 1980, eu botava os pés no Rio de Janeiro, daquela vez para viver na cidade. Fui morar com meu irmão e sua família, o que me ajudou na fase de adaptação. Havia também meu tio, mas, por azar, justo nesse ano, ele adoeceu e veio a falecer. Eu e Norma, sua companheira, estivemos juntos dele nesses meses nada fáceis.
Sobre meu tio havia certa mística. Ele seria um sujeito pouco sociável, metido com o trabalho e tímido no afeto. No nosso convívio, descobri um homem diferente do que deixava transparecer. Foi ele, por exemplo, quem me catalogou como homem, ou seja, o Alexandre que estava ali não era o rapazote meio desajuizado do Joaquim e da Haydée, e sim um homem que tomava decisões e o ajudava. Ouvir isso não é pouco para um rapazote meio desajuizado.
Tio Hélio, em sítio em Jacarepaguá. Foto de família.
Depois que tio Hélio foi embora, a família achou por bem que eu tivesse algum privilégio na escolha das coisas do seu espólio afetivo. Escolhi um chapéu, que já não sei onde está. Também um casaco, que só há pouco, quando o tecido esgarçou de vez, deixei de usar (guardo-o ainda no armário). E, não poderia ser diferente, discos e livros.
No baú estavam Campos de Carvalho e seu “Vaca de nariz sutil” (prefaciado por Jorge Amado). Dificilmente um garoto de dezoito anos vê cair em suas mãos, sem ser por indicação, um autor desses (para mim, um dos melhores). Estava também “Solitude on guitar”, disco do Baden Powell.
O disco do Baden tem muitos de seus clássicos, mas tem, sobretudo, “Márcia, eu te amo”. Num econômico diálogo entre violão, baixo acústico e percussão, a música, de cinco minutos, não pede licença e se abriga na gente — isso sem melodia fácil e cantante. Naquela época, algumas Márcias haviam passado por minha vida. Vieram e se foram daquele jeito de ir e vir das primeiras experiências amorosas: com leveza, mas ferindo. Estranhamente, ouvir uma, duas, três — sei lá quantas vezes —“Márcia, eu te amo” me curou das Márcias que não se quiseram minhas. E me descurou de meu tio. Perdi alguém que poderia me dar a mão nos momentos vacilantes pelos quais, jovem percorrendo seu caminho, eu passaria e passei.

6 comentários:

beth brandao disse...

BRAVO XANDÃO! Que sentimento bom senti ao ler este texto. Lembro-me bem desse período da tua chegada ao Rio, à nossa casa. O desenrolar da doença do tio Hélio e como ela te modificou. Te amo, querido irmão(?), cumpadre(?)e agradeço a Deus pela tua presença em nossas vidas.Beijinhos

angela leite disse...

Saudoso Baden! Mas não me lembro de ter escutado esse disco e nem sua "Márcia, eu te amo"... Mas o que interessa mesmo, Alexandre, é a delicadeza de sua crônica, que presta uma homenagem justa a alguém que, de um jeito ou de outro, continuou a "dar a mão" ao rapazote em seus passos pela vida.
Parabéns pelo texto e por sua sensibilidade!
Angela Leite

Teresa Cristina disse...

Uma beleza mesmo a crônica, uma sensível homenagem ao tio Hélio, a quem você, jovem ainda, prestou sua solidariedade e deu seu carinho e de quem recebeu, além do amor, o atestado da maturidade. Beijo,irmão-afilhado-compadre. Você é compadre também, não? Até me perdi nesse imbróglio!

No Osso disse...

Beth, Angela e Teresa Cristina, saboreei cada uma de suas palavrinhas. Tõ, assim, alimentado pruma vida inteira. Brigadim. I love you todas.

lucabarbabianca disse...

A arte de transformar uma reminiscência biográfica em crônica é para poucos. Sensibilidade e delicadeza numa forma primorosa. Barbakisses.

No Osso disse...

Luiz Carlos, obrigado pela visita e pelo elogio.
Volte sempre.
Abraços