Eu sou o
capitalista que chora pela fome das crianças de Mali.
Eu sou a
mulher que fuma charutos às escondidas da sogra.
Eu sou a
sogra cega.
Eu sou o
ciclista com ganas de atropelar a sombra dos automóveis.
Eu sou o que roubou
a herança para comprar uma partitura original de Debussy.
Eu sou a
bicha que cuida da segurança da vila.
Eu sou o
motorista do carro que tem simpatia pela contramão.
Eu sou o
paulistano para quem a cidade não vai além da minha rua.
Eu sou a
mulher que dá ordens na cama.
Eu sou a
freira cujas crenças nunca revela.
Eu sou o
matador profissional de pulgas.
Eu sou o
sambista de uma nota só.
Eu sou o
desgraçado de bem com a vida.
Eu sou a
norueguesa que planeja casar-se com uma guria guatemalteca.
Eu sou o
vigarista notório que ainda tem medo do pai.
Eu sou o
negro de alma branda.
Eu sou a
jogadora de pôquer que aposta e entrega as calças.
Eu sou o
poliglota que comete os mesmos erros em todos os idiomas.
Eu sou o
poeta que prefere pudins a sonetos.
Eu sou o
confeiteiro de endechas.
Eu sou o
valentão que só tem mais um dente para perder em briga de rua.
Eu sou a
mulher cuja beleza é meu silêncio.
Eu sou aquela
que visitou o estuprador faminto.
Eu sou o velho
sem idade.
Eu sou a
santa que procura se manter incógnita.
Eu sou o
seresteiro fora do tom.
Eu sou você
que não se conhece.
Eu sou o
garotão do Arpoador vivendo no Alaska.
Eu
sou o policial que não brincou de mocinho e bandido.
Eu
sou o Hércules domesticado.
Eu
sou a amante do homem puro.
Eu
sou o que em vão abastece de medo o corrupto.
Eu
sou o crupiê de roleta russa.
Eu
sou a mosca que vomitou na sua sopa.
Eu
sou o rei nu, depois de usar o vaso sanitário e antes de se limpar.
Eu
sou a rainha um pouco lesada de tanto pó.
Eu
sou o melhor aluno do professor cansado.
Eu
sou a professora do aluno castrado.
Eu
sou o riso.
Eu
sou a lágrima.
Eu sou um deus nos acuda sem dinheiro. Passo bem,
apesar de tudo.
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