5.12.19

O orientador


Até aquele momento, a oficina transcorria dentro do que se pode considerar normal. Levávamos nossos exercícios, e o orientador fazia aquilo pelo qual nós o pagávamos: orientava. Apontava um personagem incoerente aqui, uma frase que soava como um ruído ali, uma história sem muito sentido.



Foi exatamente a partir da história avaliada por ele como inverossímil que o clima esquentou. O conto de Deluz era bem engraçado, mas o orientador cismou com uma passagem na qual o personagem comprava uma besteira numa grande loja de magazine e pagava com uma nota falsa. Para o orientador, ninguém conseguiria passar uma nota falsa numa loja com tamanha estrutura. A discussão ficou boa, tendo-se formado dois grupos. De um lado, os que reconheciam a impossibilidade de aquilo ocorrer, mas também não viam no fato a menor importância para o desenrolar do conto. Além do mais, havia o maldito “quase”, nessa perspectiva, tudo pode acontecer, a vida imita a arte, essas coisas batidas. O outro grupo, encabeçado pelo orientador, era irredutível. Se o conto é realista, a realidade tem de caber nele. O conto de Deluz seria realista até a medula, então que a realidade coubesse nele.

Gerônimo, o caladão de poucos contos e de poucas opiniões sobre nossos trabalhos, pediu a palavra para dizer que o orientador estava mostrando um lado terrível, a ignorância. Antes que alguém reagisse, ele continuou com seu argumento. Citou dois livros da primeira estante da literatura mundial. Na obra de Proust, há um molecote de uns sete anos que, ao andar pelo campo, reconhece cada uma das florezinhas encontradas pelo caminho, cada miosótis, cada isso, cada aquilo, Gerônimo se lembrava da cena mais geral, não dos detalhes. No entanto, era algo sem realismo algum, nenhuma criança daquela idade conheceria a natureza tão a fundo.

O orientador ficou emudecido, seu olhar embaçou.

Gerônimo, indiferente, continuou argumentando. Victor Hugo, no monumental Os miseráveis, criara uma situação na qual Jean Valjean ficou horas dentro de um caixão quase todo fechado, depois foi jogado na cova e saiu da situação só um pouco tonto. E mais, ele só foi salvo porque seu aliado e protetor conseguiu tirar do bolso da camisa do coveiro um papel importante, sem o qual o coveiro não sairia do cemitério depois das cinco da tarde. Foi uma artimanha para fazer o coveiro largar tudo e correr para a casa atrás do documento e o amigo de Jean ter tempo de abrir o caixão e tirá-lo de lá. Ou seja, zero de verossimilhança.

O orientador suspirou fundo, ficou de costas para nós e deu uns bons murros no quadro negro. Zilda e Lúcio saíram da sala às pressas. O ar ficou carregado. Deluz olhou com raiva para o Gerônimo. Gerônimo deu de ombros. Uma ansiedade coletiva fez o ar carregado ganhar corpo e escurecer a sala.

Um vento leve, mas barulhento, denunciou um movimento abrupto do orientador. Ele rodopiava e, quando pudemos ver novamente seu rosto, o orientador não era mais o orientador. Ao começar a andar em nossa direção, percebi que quem se aproximava era um minotauro, um minotauro dilacerado e faminto. O monstro parou diante da cadeira do Gerônimo, tomou-o pelo cabelo e o devorou.

Retornando a seu lugar, rodopiou outra vez e voltou a ser o baixinho e estridente de sempre. Esfregou as mãos e nos mandou embora. No próximo encontro, fez questão de enfatizar, retornaríamos àquela profícua discussão.


Achei tudo um pouco contraditório, o defensor da verossimilhança fazer o que havia feito, mas quem sou eu se não um reles aprendiz. Meus colegas, em particular o Deluz, ficaram como que petrificados em seus assentos. Para mim, ordem dada, ordem cumprida: caí fora. Carreguei a impressão de ter participado da melhor aula de todos os tempos.

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