11.11.19

Conversa mole

aos Escritores de Ressaca


Tudo acontece nos grupos de Whatsapp, o que não é novidade para ninguém. Todos ou quase todos estamos ou já estivemos num daqueles alimentados em velocidade estonteante. Conteúdo? Muito “bom-dia”, “Deus te guie”, nada além. Não reclame, há piores. A fábrica de fakenews, o desfile da rudeza, o suspiro e o gemidão insistentes da pornografia, tudo encontrou no aplicativo que está destruindo a chamada telefônica o local ideal de reprodução.



De todo modo, há horas engraçadas e/ou interessantes perdidas nesse museu de nossas podridões. Tenho um velho conterrâneo que toda manhã envia uma espécie de oração, não, não é oração, é uma reflexão, um texto que os menos incrédulos ou os mais esperançosos leem e se sentem bem, fortalecidos. Não é o meu caso, mas tudo bem, é melhor isso do que um cartãozinho com passarinhos piando “boa semana, coração”. O mesmo amigo, passado o meio-dia, dispara o envio de fotos de mulheres nuas, que chega ao infinito nas sextas-feiras. Acho engraçada a situação, apesar de quase nunca ter paciência de ler o texto matinal e de checar as imagens vesperais.

Há um grupo feito especialmente para alguns escritores nos socorrermos uns aos outros quando somos atacados por aquela dor de cabeça que os porres — não os “de vinho, de poesia ou de virtude” à moda de Baudelaire — causam. As prosas são sempre inconsequentes, amáveis, o que não impede de às vezes algum de nós entrar na hora errada (de pileque e não de ressaca) e distribuir meia dúzia de sopapos virtuais à revelia. Tudo perdoável à luz de São Drummond de Lispector Ramos.

Nesse grupo, há poucos dias, levantou-se a “teoria” de que Joyce, recluso para escrever seu romance mais famoso, verdadeira bomba sobre os alicerces da literatura, não encontrava um bom título. Já em desespero, ele ouviu, de um cômodo contíguo àquele em que estava, alguém perguntar: Ouvisse? Foi o que bastou, o título do livro estava ali: Ulisses. Sim, amigos, a troca de mensagens entre escritores que podem, hoje ou amanhã, abocanhar os prêmios literários mais importantes do país, quiçá do mundo, desce a esse nível. Ou a níveis ainda mais baixos, pois, a essa piada infame, emendou-se que Joyce servira de modelo para a velhinha do “A praça é nossa”, aquela que entendia “Ulisses” quando se dizia “ouvisse” ou, como era o mais habitual e motivo dos conflitos envolvendo a personagem, “a camisinha furou” no lugar de “uma vezinha, por favor”. 


Ao falar em Joyce, lembro-me de meu amigo Horácio Soares Neto, falecido antes e não por conta do Whatsapp. Pioneiro em informática no Brasil, xilogravurista e escritor, em um de seus romances policiais, acontece de o detetive, caçador e caça, numa hora de aperto, se meter em um hotel de quinta categoria nos arredores da Central do Brasil. O recepcionista, homossexual efusivo, ao se apresentar, diz: “Meu nome é Ulisses, mas pode me chamar de Joyce”.


É melhor conviver com essas bobagens do que com loas às armas, cusparada sobre os “esquerdopatas que dominaram o mundo até aqui”, canalhice contra minorias, ignorância vestida de beca. Conversa mole em dias duros tanto ampara como aos bons laços de companheirismo perpetua.



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