7.10.05

Exercício de Opinião

É possível passar pela vida meio encoberto, entrando e saindo calado dos conflitos, mesmo dos mais triviais, que não mudam o curso dos fatos em nada. Há quem não torça por um time, não prefira louro a moreno, vermelho a cinza, amar em colchão de água a desfalecer sobre o recheio de palha de um modelo ultrapassado. Não me lembro se Balzac ou Wilde descreve, num jantar daqueles espalhado em mesa de inúmeros talheres, um cidadão beirando seus trinta anos cuja principal característica é o silêncio absoluto. Explica o narrador: esse mutismo seria uma opção racional, uma vez que, pensava o personagem, tudo que tinha para falar fora dito até seus 18 anos. Estamos aí com dois extremos: o covarde e o lúcido, nem um nem outro abre a boca para emitir uma opinião menor sobre nada. Para ferir minha própria covardia (minha lucidez feriu-se de morte na minha inauguração, nenhuma escola deu jeito nisso), vou tentar dizer o que penso dessa consulta pública a respeito de desarmamento.

Certo dia, adolescente meio perdido, resolvi fazer o curso de economia. Um sujeito que curse economia, principalmente numa linha de pensamento mais ortodoxa, longe do marxismo e afins, fica marcado por todas aquelas teorias. É chato economia, e a gente até tenta se desvencilhar dela, mas, quando algumas questões aparecem, é por meio do raciocínio econômico que nos organizamos.



Para economista, bem é tudo que se produz. Um carro, uma cama e seu colchão, um revólver, cocaína, craque, serviços hospitalares ou de prostituição. Portanto o mercado, lugar das interações entre pessoas (cada qual vendendo seu produto — a força de trabalho é um deles, claro), é o espaço da socialização por excelência. Com a necessidade, o mercado passou a ser fonte de renda também do estado, através da cobrança de impostos. Portanto acorrem a ele o vendedor, o comprador e o coletor. Estando tudo mais ou menos dentro do razoável, as três figuras acordam que as transações devem ser acompanhadas de um pagamento ao governo, que com a receita provê a todos os serviços cabidos a ele.

Se é assim, um mercado conhecido, reconhecido e tal sofrerá um revés dilacerante se for jogado ao espaço da ilegalidade. Ontem era legal, hoje não é mais. É verdade que no caso brasileiro as empresas poderão continuar a fabricar suas armas, reduzindo o raio de sua ação ao vender apenas para as polícias ou ao exportar. De outro lado, os cidadãos que gostam de ter armas, que têm armas porque se sentem mais seguros com elas do que sem elas, o que farão um dia depois de serem metidos na ilegalidade? E o que fará o governo ao ter parte de sua receita diminuída concomitantemente ao aumento de seus custos (velar pela nova lei)? Veremos surgir dois legados da disfunção social: mercado negro e corrupção. Quem gosta de armas continuará a tê-las; quem deveria conter o mercado negro, mal equipado, mal remunerado, poderá ceder ao velho e bom jeitinho (dez mil réis para o leite dos meninos).



Não tenho armas e acho que uma única vez dei um tiro, que, por sorte, passou longe do passarinho, meu alvo. Hoje não carrego o arrependimento de um assassinato; e a ave — eu acho, eu torço — ainda voou por aí durante o tempo próprio dos pássaros. Conheço pessoas que têm. Algumas são facínoras, outras, colecionadoras: Peters Pans de plantão. Uma e outra já estão naquilo que chamamos de meia-idade, portanto, não aceitarão, nem com a força da consulta universal, o fato de não poderem ter mais armas.

Se é assim, melhor seria, ao invés de uma proibição pura e simples, um investimento em educação da não-violência. Mas como, dirão? É mesmo, como? Só se muda um mundo carregado de violência se nele é desferido um golpe de morte na sua lógica realimentadora. Um exemplo: desarmando a polícia. Por que não?

Se nunca mexi com armas, brinquei muito de bandido e mocinho, metendo chumbo de mentira em meia dúzia de delinqüentes, ladrões de vacas do velho oeste. Na adolescência, já pacífico e poeteiro, quando muito troquei uns socos em briga de rua. Nelas aprendi uma coisa: há regra até nessa confusão. A coisa só descamba para algo mais perigoso quando uma das partes se arma, seja de cadeira, seja de garrafa, seja de pedaço de pau. Uma reação, sempre. Se ninguém sai do braço e da perna, a porrada vai durar, muita gente vai se machucar, mas tudo no braço e na perna. Se a polícia está desarmada, os bandidos também podem ficar. Inocência? Acreditar que a proibição da comercialização de armas resolverá uma grande parte dos problemas atrelados à violência, não é?

Digo mais: melhor liberar as drogas, trazer para a legalidade um mercado oculto, quer dizer, ilícito, mas nem de longe oculto. O efeito final sobre a violência e suas adjacências será infinitamente maior.

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