16.7.22

Parque de distração

 No Brasil, todo mundo está precisando dar um descanso à cabeça. Para isso, existe um parque cheio de possibilidades que vão do joguinho eletrônico ao carteado, passando por uma leitura leve. Há, meio intrusa, uma opção que me agrada muito: brincar de caçar palavras que sumiram das ruas.

Na minha infância, em casa com duas moças que demandavam intensamente a máquina de costura, chulear era palavra usual. Para quem não sabe, seu significado é dar uns pontinhos na beira do tecido para ele não desfiar. Eu ignorava, mas o Houaiss me conta que chulear também é, ou foi, “ficar na expectativa de obter algo muito desejado”. Chuleei a manhã toda o encontro com Geralda. Ah, até os nomes se perdem pelo caminho. Segundo o IBGE, na década de 1950, havia umas vinte mil Geraldas no Brasil; sessenta anos depois, não chegavam a mil.

A distração por meio de palavras mortas é uma coisa meio sofisticada, cerebral. Ora, então, é melhor agarrar-se a coisa mais trivial: sair à rua em busca de um refúgio, o que não falta no Rio de Janeiro.




Me sentei na mureta da Urca. À minha frente, num dia azul de inverno, o mar, o Cristo Redentor, lá longe o Dedo de Deus. Enfim, uma paisagem exuberante, capaz de restituir o fôlego ao mais estressado entre os estressados. Acontece que, um pouco adiante, havia uma moça linda, mas linda mesmo. Ela também contemplava a beleza do Rio de Janeiro. Ela lá, eu cá: só isso. Homem educado em velhos tempos, se eu não houvesse aprendido tanto com as mulheres desde então, teria sido inconveniente. Talvez a ficasse olhando descaradamente ou a importunasse puxando assunto. Mas sei que não é assim, é preciso respeitar, e eu respeito. Para controlar o impulso, os barcos no mar, os aviões passando rente ao Cristo a caminho do Santos Dumont.

O grupo Rumo tem uma composição chamada “Minha cabeça”. Ela diz: “Eu vou pensar um assunto, certo? / um assunto que eu escolho, é claro / então eu faço força, força, força / e olha o que acontece / não adianta ter cabeça / ela pensa o que quer / para, cabeça / assim você me enlouquece / não cansa você?” Sempre cantei essa música para crianças, primeiro meus sobrinhos, depois meus filhos e agora meus sobrinhos-netos. Elas se interessam, a meu ver por começarem a entender que a relação com a cabeça é complexa. Mas, nesse momento, penso na música porque, naquele dia na Urca, ao olhar a montanha, os barcos, os aviões, não consegui me distrair da moça linda e chuleei um encontro com ela, que, aposto, não se chama Geralda. Mas nada foi além da fantasia, isso que é uma espécie de carrinho de trombada sozinho na pista, sem bater em ninguém, sem bater em nada, rodando em torno de si mesmo.

5 comentários:

Cesar Cardoso disse...

Que delícia de crônica, Alexandre. Na casa da minha infância também havia máquina de costura. Minha mãe e minha avó eram costureiras. Eu ouvia chulear e mais um monte de nomes de tecidos. Tafetá. Parece nome de ponta esquerda do São Cristóvão.
E a mureta da Urca é de uma beleza capaz de competir com a beleza de muitas mulheres. Mas sempre surge uma que senta na mureta e balança as pernas e seu sorriso. Aí não há mureta que resista.

Abracadabraço do Cesar

No Osso disse...

César, que bom sua passagem por aqui. Melhor ainda tendo gostado da crônica. Eu vivi entre costuras, revistas Burda, fitas, linhas e muitas mulheres discutindo corte, estampas, essas coisas. É sempre nostálgico.

Estação das Letras disse...

Muito bom ler vc, Alexandre! Vc tem profundidade e poesia nas menores observações.. Não faz literatice..Um beijo da Suzana














No Osso disse...

Suzana, querida, obrigado pelas palavras. Fiquei todo envaidecido.

Estação das Letras disse...

Fique mesmo.. são verdadeiras! Um beijo com saudades sempre