27.8.22

De última hora

A caminho da mesa no fundo do bar, o cronista comanda um chope e uma porção de amendoim ou azeitona, o que for mais fácil. Senta-se de frente para a porta, pois não quer perder um só acontecimento. O garçom deixa seu pedido e volta para perto do outro garçom. Ambos se colocam bem na entrada, um à direita, o outro, cotovelo apoiado no balcão, à esquerda. O da direita mexe no celular, o outro olha a rua. O cronista pensa no distanciamento, na incomunicabilidade. Sorve um bom gole do chope, que está bem tirado e na temperatura ideal. Ele gostaria de desejar muita coisa na vida, mas, no fundo, o chope é o máximo a que chega. Fora isso, cultiva um nada de vaidade, que é uma espécie de desejo insaciável.

Bate o dedo indicador na mesa, mas, sem produzir som para não chamar a atenção do garçom, não precisa dele. O dedo, obedecendo a uma música que só toca dentro do cronista, dança. O garçom do celular se aproxima do outro, mostra qualquer coisa na tela e os dois riem. Quer dizer, o que não se desgruda do aparelho ri desbragadamente, o outro, aquele que deixou o chope e a azeitona na mesa, é mais contido, talvez tenha sido apenas educado.

De vez em quando, ao passar pela calçada, alguém cumprimenta os garçons ou o atendente de balcão. Uma jovem senhora avisa que virá mais tarde, tem uma amiga do interior em sua casa e faz questão de que ela experimente as pataniscas de caranguejo. O cronista se dá conta de que, apesar de frequentador assíduo, jamais comeu daquela iguaria. Quando vai além da azeitona e do amendoim, repete o peixe à milanesa, acompanhado de arroz não com brócolis, mas de brócolis — uma licença poética, uma delícia culinária. No bar, estão ele, os dois garçons — um distraído com o celular, o outro retraído, talvez pensando em boletos, problemas familiares ou cultivando nostalgias —, o atendente do balcão e a turma da cozinha, gente que a despeito do pouco movimento tem muito trabalho; cortam cebola, descascam e amassam alho, limpam carne, preparam a massa do bolinho de bacalhau, fazem sabe-se lá o que com o caranguejo, recheiam pastel, amolam facas, cantarolam. Da mesa, é possível ouvir um pouco da comportada algazarra.

Ainda hoje deverá enviar a crônica à revista. Não tem ideia do que escrever. O bar vazio vezes o vazio daqueles poucos homens à espera dos clientes vezes o vazio do próprio cronista resulta em nada. Pede mais um chope e um novo potinho de azeitona. Chega a pensar em beber uma dose, uma cachaça mineira, mas desiste, afinal, há uma crônica a ser escrita. Uma crônica a ser escrita e nada a dizer. Ou por outra: há o que dizer. O governo continua péssimo. O amor não se cansa de bater com a cara na porta. A comédia toma conta das ruas, das mesmas ruas que servem de cenário à decadência. Sim, não falta assunto, mas o cronista não quer lidar com eles. Sua pretensão é observar e falar do que pouco se revela.

Dado o prazo apertado e a delícia do chope que o deixará mais tempo no bar às moscas, talvez não lhe reste outra saída a não ser a de escrever a crônica da falta de assunto. Chegar a esse ponto é a derrota, pelo menos a dele, que não é nenhum Braga ou Mendes Campos; nenhum Pelé das letras.

Pede o terceiro chope e, vá lá, um chorinho de uma daquelas de Salinas. Antes de a cachaça descer goela adentro, deixa-a descansar na boca e formigar a língua. Poderia escrever sobre os pequenos prazeres, mas quem está para pequenos prazeres? Os garçons se aproximaram um do outro e, claro, acompanham um grande acontecimento que se passa na tela do celular. Quando nada acontece, alguma coisa acontece, ainda que de forma mentirosa, no mundo virtual.

Morde com força a azeitona. No impacto dos dentes com o caroço, uma obturação leva a pior. O cronista a recolhe e embrulha-a num guardanapo de papel. Antes de enfiar no bolso aquela bolota branca, passa a língua no buraco do dente e sente o gosto do fracasso, prato mal cozido e sem tempero. Apesar disso ou exatamente por isso, pensa ter encontrado uma crônica. A tarefa será escrevê-la com humor, um mínimo de humor.

Encosta-se no balcão a fim de pagar a despesa, mas resolve pedir, para tomar em pé, outra dose e mais um chope. A saideira. O garçom do celular se aproxima e lhe mostra aquilo que o fez rir tanto, o tempo todo. O cronista pega o aparelho, firma-o bem na mão, afasta o braço e, aos primeiros segundos do vídeo, chora.

5 comentários:

Varanda disse...

Muito boa!!! Isso é que é "alma de cronista"!! :-)

No Osso disse...

Alma meio ébria de cronista.

Caio disse...

De acontecimentos e não acontecimentos faz-se a crônica, diria CDA.
Seja prudente ao comer azeitona com caroço.

Nilma Lacerda disse...

O clichê do cronista sem assunto e sai uma obra quase prima. Diria, assim, uma obra mater. Cresce minha admiração pelo talento do escritor.

No Osso disse...

Caio, já estou naquela fase de ser prudente até para comer vento... Nilma, querida, nós estamos nessa de arriscar, mas não chegamos a Pelé, somos no máximo um esforçado Tostão, o que já está bom demais.