A caminho da mesa no fundo do bar, o cronista comanda um chope e uma porção de amendoim ou azeitona, o que for mais fácil. Senta-se de frente para a porta, pois não quer perder um só acontecimento. O garçom deixa seu pedido e volta para perto do outro garçom. Ambos se colocam bem na entrada, um à direita, o outro, cotovelo apoiado no balcão, à esquerda. O da direita mexe no celular, o outro olha a rua. O cronista pensa no distanciamento, na incomunicabilidade. Sorve um bom gole do chope, que está bem tirado e na temperatura ideal. Ele gostaria de desejar muita coisa na vida, mas, no fundo, o chope é o máximo a que chega. Fora isso, cultiva um nada de vaidade, que é uma espécie de desejo insaciável.
Bate o dedo indicador na mesa, mas, sem produzir som para
não chamar a atenção do garçom, não precisa dele. O dedo, obedecendo a uma
música que só toca dentro do cronista, dança. O garçom do celular se aproxima
do outro, mostra qualquer coisa na tela e os dois riem. Quer dizer, o que não
se desgruda do aparelho ri desbragadamente, o outro, aquele que deixou o chope
e a azeitona na mesa, é mais contido, talvez tenha sido apenas educado.
De vez em quando, ao passar pela calçada, alguém cumprimenta
os garçons ou o atendente de balcão. Uma jovem senhora avisa que virá mais
tarde, tem uma amiga do interior em sua casa e faz questão de que ela experimente
as pataniscas de caranguejo. O cronista se dá conta de que, apesar de frequentador
assíduo, jamais comeu daquela iguaria. Quando vai além da azeitona e do amendoim,
repete o peixe à milanesa, acompanhado de arroz não com brócolis, mas de
brócolis — uma licença poética, uma delícia culinária. No bar, estão ele, os dois
garçons — um distraído com o celular, o outro retraído, talvez pensando em boletos,
problemas familiares ou cultivando nostalgias —, o atendente do balcão e a
turma da cozinha, gente que a despeito do pouco movimento tem muito trabalho; cortam
cebola, descascam e amassam alho, limpam carne, preparam a massa do bolinho de
bacalhau, fazem sabe-se lá o que com o caranguejo, recheiam pastel, amolam facas,
cantarolam. Da mesa, é possível ouvir um pouco da comportada algazarra.
Ainda hoje deverá enviar a crônica à revista. Não tem ideia
do que escrever. O bar vazio vezes o vazio daqueles poucos homens à espera dos
clientes vezes o vazio do próprio cronista resulta em nada. Pede mais um chope
e um novo potinho de azeitona. Chega a pensar em beber uma dose, uma cachaça
mineira, mas desiste, afinal, há uma crônica a ser escrita. Uma crônica a ser
escrita e nada a dizer. Ou por outra: há o que dizer. O governo continua
péssimo. O amor não se cansa de bater com a cara na porta. A comédia toma conta
das ruas, das mesmas ruas que servem de cenário à decadência. Sim, não falta
assunto, mas o cronista não quer lidar com eles. Sua pretensão é observar e falar
do que pouco se revela.
Dado o prazo apertado e a delícia do chope que o deixará
mais tempo no bar às moscas, talvez não lhe reste outra saída a não ser a de
escrever a crônica da falta de assunto. Chegar a esse ponto é a derrota, pelo
menos a dele, que não é nenhum Braga ou Mendes Campos; nenhum Pelé das letras.
Pede o terceiro chope e, vá lá, um chorinho de uma daquelas
de Salinas. Antes de a cachaça descer goela adentro, deixa-a descansar na boca
e formigar a língua. Poderia escrever sobre os pequenos prazeres, mas quem está
para pequenos prazeres? Os garçons se aproximaram um do outro e, claro,
acompanham um grande acontecimento que se passa na tela do celular. Quando nada
acontece, alguma coisa acontece, ainda que de forma mentirosa, no mundo
virtual.
Morde com força a azeitona. No impacto dos dentes com o caroço, uma obturação leva a pior. O cronista a recolhe e embrulha-a num guardanapo de papel. Antes de enfiar no bolso aquela bolota branca, passa a língua no buraco do dente e sente o gosto do fracasso, prato mal cozido e sem tempero. Apesar disso ou exatamente por isso, pensa ter encontrado uma crônica. A tarefa será escrevê-la com humor, um mínimo de humor.
Encosta-se no balcão a fim de pagar a despesa, mas resolve pedir, para tomar em pé, outra dose e mais um chope. A saideira. O garçom do celular se aproxima e lhe mostra aquilo que o fez rir tanto, o tempo todo. O cronista pega o aparelho, firma-o bem na mão, afasta o braço e, aos primeiros segundos do vídeo, chora.
5 comentários:
Muito boa!!! Isso é que é "alma de cronista"!! :-)
Alma meio ébria de cronista.
De acontecimentos e não acontecimentos faz-se a crônica, diria CDA.
Seja prudente ao comer azeitona com caroço.
O clichê do cronista sem assunto e sai uma obra quase prima. Diria, assim, uma obra mater. Cresce minha admiração pelo talento do escritor.
Caio, já estou naquela fase de ser prudente até para comer vento... Nilma, querida, nós estamos nessa de arriscar, mas não chegamos a Pelé, somos no máximo um esforçado Tostão, o que já está bom demais.
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