7.5.22

Enquanto caminho

 

Esta semana foi infame para a História do Brasil, pois não reagimos. (Dorrit Harazim,“Consciência”, O Globo, 1º/5/22)


Escolho o álbum e, com a música no fone de ouvido, desço à rua. É comum, quando caminho, ter uns pequenos delírios, desta vez não é diferente. O que é um clássico, me perguntaria alguém, talvez em mesa de bar ou na preguiça que nos toma depois do almoço de domingo. Não saberia, e não sei, explicar. Como resposta botaria as músicas que ouço para tocar na eletrola, na vitrola, no CD player, num streaming da vida, de repente até dando uma ordem àquele robô com nome de mulher (um ultraje inventar uma máquina de receber ordens e nomeá-la assim): “Moça, toque o disco Cartola, de 1976”. Gosto da frase-clichê: não sei o que é um clássico (serve para outras ignorâncias), mas sei reconhecê-lo.

Passa por mim um sujeito numa corrida estranha, um trotezinho meio desarticulado, e fico com medo de que ele caia de si. Houve uma época em que eu, em vez de caminhar, corria. Um amigo me viu e caçoou do meu jeito, decerto pensou que era um trotezinho desarticulado e que eu poderia cair de mim. De mim, não sei, mas um dia caí. Fui a uma emergência, tirei chapa, estava um coquinho. Coquinho ou não, não corro mais. 

Duas mulheres andam em minha direção, e, quando se aproximam, apesar de meu fone de ouvido, eu as ouço perfeitamente. Uma delas leva o dedo indicador da mão direita à têmpora e diz: tem de cuidar do psicólogo. (Lógico, dos cronistas também, baby!) Um casal cruza à minha frente. Ele leva o cachorro, ela empurra o carrinho com o bebê e chora. É tão difícil ver aquela moça chorando. Tento encontrar uma justificativa branda. É dia de vacinação (contra gripe e sarampo), estamos perto de um posto de saúde, então concluo que a mãe se recupera do sofrimento da criança. Tomara seja só isso. De todo modo, invejo quem chora, invejo mais ainda quem chora por coisas pequenas.

O streaming emenda ao clássico Cartola músicas que julga parecidas. Dorival Caymmi com sua voz entre terrena e etérea canta “é doce morrer no mar”. Nelson Gonçalves toma posse de Carinhoso. Um inesperado Itamar Assumpção insurge entre compositores que decerto o influenciaram e me surpreende e me deixa feliz. No meio de saltos previstos e imprevistos, um violão tímido vai num crescendo só. Paulinho Nogueira toca sua “Bachianinha número um”. Ao contrário daquela mãe, não tenho um carrinho para empurrar e, desse modo, também não tenho como dar a um homem estúpido qualquer que passe pela rua uma justificativa para as lágrimas que correrão dos meus olhos. Homem estúpido sou eu, que seguro o choro. Minto, encharco as vísceras, chorando do olho para dentro. Naquele instante, estaria incapaz de responder ao bom-dia que, um pouco antes, a moça da limpeza havia me dado.

Choro um tantinho por mim e um tantão por nós. A que ponto chegamos! Que desfaçatez é essa que nos governa, ameaça com golpe (já não é mais ameaça, discute-se apenas a data: se antes ou depois da eleição, caso o atual governo perca nas urnas) e é aplaudida e adorada? Luiz Eduardo Soares defende a ideia de que parte dos nossos problemas, ancorados naquele ainda incompreendido 2013, está na melhoria de vida dos mais pobres ocorrida nos governos do PT (me adianto, ele não nega os problemas tão conhecidos). Enfio uma metáfora no pensamento do cientista social: enfrentam-se “a gente não quer só comida”, voz relativamente nova e titânica, e o sempiterno e patético “tem muita doméstica na Disney”. Seja como for, agora tudo parece perdido. Se dançássemos uma quadrilha, o narrador diria “a ponte quebrou” e, em seguida, não desmentiria. Impossibilitados de atravessar o rio e avançar, voltaríamos ao país da fome (estamos quase lá). Nossa elite pouco se importaria (nunca se importa), pois não precisa de pontes, cruza o rio de navio, de avião. Na realidade, ela já está do outro lado, nasceu lá, e permanece feliz quando não encontra doméstica nos aeroportos e parques de diversão dos Estados Unidos, que, claro, estão do outro lado do rio. 

Num primeiro momento, confundo Paulinho Nogueira com Baden Powell, e isso me faz constatar quantos gênios a música popular brasileira produz. Meu choro cessa. É preciso me agarrar ao que não é uma esperança, mas um fato: o artista brasileiro é inventivo e sensível. Seremos salvos pelo Cartola, ou pelo Emicida.






7 comentários:

Lucy disse...

Meu querido, sinto sua caminhada como se fosse minha, o divagar, o devagar e também "invejo quem chora, invejo mais ainda quem chora por coisas pequenas". Ontem mesmo falei do Paulinho e de sua Bachianinha 1 (que telepatia boa contigo). É uma de minhas paixões e parte dos "fatos" belos que me fazem distrair dessa realidade injusta e cruel. Obrigada por estar aí.

No Osso disse...

Lucy, quer dizer, Jaci, bom estarmos em sintonia. Sinal de que há saída. "Eles são muitos, mas não podem voar". Obrigado pela visita.

Unknown disse...

Não tenho comentário! Só sei que nossos compositores/as podem nos salvar!!!

Vermelho

Diana Pessoa disse...

Amei o texto! Siga firme cronista querido, com ou sem streaming, vc que toca em pontos sensíveis da gente, sossegue pois o sol há de brilhar mais uma vez, nem que seja apenas do lado de dentro.

No Osso disse...

Vermelho e Diana, queridos amigos, obrigado pela visita. Ouçamos Cartola, um sol para o nosso interior (linda imagem, Diana).

Dag Bandeira disse...

Sempre gosto muito de suas crônicas, mas este: caí de mim, é genial.
Saudade, amigo.

No Osso disse...

Dag, querida, eu sempre caio de mim, não paro em pé nunquinha. Saudades....