17.7.20

Adolfinho em faxina



Como há males que vêm para o bem, Adolfinho viu na quarentena uma oportunidade de assumir tarefas e zerar dívidas afetivas. Cuidaria da própria refeição, que seria leve, lavaria a roupa, limparia a casa. Leria, ouviria seus bolachões esquecidos no alto do armário, assistiria aos caubóis de que tanto gostava e a outros filmes. Folhearia os álbuns de família e os que mantinha com fotos de seus namoros. Uma parada para reposicionamento. Há males que vêm para o bem. 

Ao tirar os primeiros tufos de poeira do chão da sala, no início da quarentena, Adolfinho ficou espantado. Como era possível que tudo aquilo estivesse ali e ele não visse? Pensou então em Gerusa, a arrumadeira, e foi um pensamento fugaz e indefinido. Quando, em seguida à faxina, a dor nas costas obrigou-o a fazer compressas e tomar um analgésico, voltou a pensar em Gerusa, dessa vez com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Quando viu umas lagartinhas entre as folhas de alface, teve ímpeto de jogar tudo no lixo. Suspirou, fez uso da razão, óbvio que algo vindo da terra traria alguns bichinhos estranhos. Correu à internet em busca de uma dica de como lidar com a situação. Paciência, muita água em cada uma das folhinhas, que depois deveriam repousar numa mistura de água com água sanitária. Na dúvida, fez o mesmo com o tomate. Quando viu as mãos ressecadas, pensou em Gerusa com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Quando ajoelhou para limpar o vaso sanitário, preparou-se para vomitar, pois, naquela posição, naquele lugar, o corpo só se lembrava de ter estado para vomitar depois de uma bebedeira. Adolfinho controlou-se. Olhou para o que tinha à mão: desinfetante, antibactericida, saponáceo. Fazer uso de tudo, com moderação, deixaria o vaso limpo e asséptico. Poderia passar a esponja do lado de fora e do lado de dentro? E depois poderia utilizá-la na pia? E para a pia bastavam essas coisas? O que usar nas torneiras? Quando sentiu uma fisgada nas costas e percebeu que umas manchas marrons no interior do vaso não saiam de jeito nenhum, Adolfinho pensou em Gerusa com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Não demorou muito, ligou para Gerusa. 

— Seu Adolfo, tudo bem? Aconteceu alguma coisa? 

— Não, Gerusa. É que... — percebeu que não sabia por que ligara. Saudade? Vê lá se sentiria uma coisa dessas por ela. Nutria um desejo de convencê-la a voltar ao trabalho, nada de ruim aconteceria. Algum pudor o impediu de ir adiante. 

— Seu Adolfo? 

— Gerusa, liguei para saber se está tudo bem, só isso. Se cuide. 

Quando Adolfinho sentou-se na sala, depois de uma manhã de limpeza e reuniões virtuais, soube pela televisão de Miguel, o menino de cinco anos que morreu por negligência da patroa de sua mãe. Adolfinho pensou em Gerusa com... dessa vez, nem lhe passou pela cabeça o sentimento de saudade; sentiu vergonha. 

Foi fazer a sesta. A palavra vergonha ecoava no ritmo dos pés, que se deslocavam da sala para o quarto. O que fazer com a vergonha? Não soube responder àquela hora, e a dúvida sumiu no sono. Ao acordar, café tomado, ligou e pediu a Gerusa que voltasse, não lhe aconteceria nada e a saudade estava grande, muito grande.

5 comentários:

Shirley disse...

Xandon meu querido, fui lendo sua crônica, e seu Adolfinho tinha cor. Homem branco meia idade que nunca fez uma tarefa doméstica decente na vida, como tantos que conheço e conheci pela vida (nem todos brancos, nesse caso). Sempre delegou isso a mulheres. Provavelmente, a mulheres negras que ele pagava. Achei que no final, haveria a redenção do sujeito, sobretudo pela menção ao menino Miguel, que tanta dor nos causou a todes. Mas ele não resiste e chama a Gerusa. Adolfinho me decepcionou, mas não me surpreendeu...
Autor realista-assertivo. Gostei. Beijos saudosos, amor!

Unknown disse...

Gostei tb, bem realista para tristeza das gerusas. Assim que possível, chamo a nossa auxiliar daqui de casa, por enquanto em férias remuneradas. Abraço!

Nilma Lacerda disse...

Alexandre, leveza e naturalidade na descrição. Ótima criação de tipo, bom ritmo narrativo. Admiração por tantas qualidades no escritor. Mas, para atender à sacudida da Shirley, e colocar um pouco de redenção no masculino branco, classe média, meia idade, talvez valesse um pouco de levedura nessa ficção. Fermentar o real não fará mal algum. Suas leitoras, seus leitores ficam esperando.

Ádlei Duarte de Carvalho disse...

Alexandre, que beleza de conto, meu amigo! Você consegue sempre, num texto curto, nos suscitar profundas reflexões. A nossa capacidade de mudar de conceitos - essa guinada que só pode se processar no íntimo da gente - me encanta muito. Somos seres fadados a trabalhar valores, incansavelmente. Seu texto mostra de forma até poética um homem que encontra na dor do outro algo tão valoroso que, talvez, nem percebesse. Isto não é uma crítica. É a expressão do que o seu texto me faz sentir. Abraço, companheiro!


No Osso disse...

Shirley, Nilma e Ádlei, obrigado pela visita. Esta pandemia tem nos jogado a todos em situações que revelam nossos mais arraigados valores. Sou pessimista, não creio que sairemos melhores de tudo isso. O Adolfinho é bem isso, ele quase se solidariza com os que verdadeiramente sofrem, mas seu egoismo é maior. E, sim, Shirley, ele (e eu) é o branco, macho - embora, como você mesma disse - não é comportamento só de seus iguais.