6.7.20

Para nada

Hoje estou apenas para cantorinhar. Ou para catar piolho em cabeça fresca de criança, mas não há criança por aqui, muito menos com piolho.

Não estou é para nada, estou apenas para o passar do sol, como dizia meu tio Ellin. Mas, devo confessar, hoje não há sol. E, vira e mexe, venta. Não é o tal ciclone-bomba que varreu Santa Catarina e Paraná, mas, preveem, não será uma brisa nordestina, uma daquelas deliciosas que serviam de argumento para Bandeira, disposto a abandonar amigos, livros, riqueza e vergonha, convencer sua amada, Anarina, a — deixando para trás filha, avó, marido e amante — mudar-se com ele para Pernambuco, Paraíba, um desses paraísos lá de cima do mapa onde se pode viver de brisa. O ventinho, nem ciclone nem brisa, vai atiçar o mar, levá-lo à ressaca.

Estou para rever filmes, mas, admito, a experiência na sala de casa não me agrada. Gosto do processo de ir ao cinema, principalmente o de rua. Sair do apartamento um pouco antes, comprar ingresso, correr à livraria, folhear as novidades, beber um café, quem sabe comer um pedacinho de bolo e comprar uma garrafa de água na farmácia ou na banca de jornal, onde, aprendi, é mais barato. Ver ou rever filmes agora é na sala e ponto. Se der sorte, os demais confinados fazem companhia; se não, enquanto na tela a moça e o moço trocam olhares, ou um malvado planeja “o” crime, ou uma mulher anda sozinha por um jardim de uma cidade a que nunca fui ou irei, os colegas de infortúnio passarão na frente da tela ou conversarão qualquer assunto sem se importarem com o atento telespectador de filmes que já viu.

Cenário de Dogville
Um problema adicional: onde encontrar os filmes para rever? Não sou bom explorador do submundo da internet e, mais, de alguns filmes guardo uma leve recordação da história, e é tudo. Como aquele francês, uma crônica linda, em que uma moça cuidava do gato de um vizinho que precisou viajar. Com essa exígua informação, como vou achar o filme, me expliquem. Emendo um outro assunto. Vocês concordam que certos filmes se assemelham a uma crônica, outros a um conto — dou como exemplo “A noiva do deserto”, de Cecilia Atán e Valeria Pivato, ou “A janela”, de Carlos Sorín, ambos de nossos vizinhos chilenos e argentinos — e outros a um romance — um tantão deles? E há também os que são teatro. Aliás, o aparentemente mais teatral de todos, Dogville, do dinamarquês Lars von Trier, que se passa num palco, com os cenários desenhados a giz no chão, é, a meu ver, o menos teatral. Ali o cinema mostrou todos os seus truques. Eu deveria rever o filme, mas, repito, onde encontrá-lo? Meus companheiros de confinamento gostarão de ver?

Ah, hoje não estou para nada, estou apenas para regar minhas dúvidas e, aqui e ali, cantarolar músicas que não sei a letra nem de quem são.

4 comentários:

Unknown disse...

Ê belezura de crônica, sô. Nusga.

Dag Bandeira disse...

Iiiih! Fiquei com uma preguiça.

Branca Maria de Paula disse...

Concordo plenamente, Xande. Entre crônica, conto e romance, gosto de todos os filmes com eles aparentados. Mas nunca lembro os benditos títulos.
Também ando um tanto frustrada e perdida nessa busca e acabo vendo série porque me torno cativa e só sigo adiante. Frustrante, pois o fim demora a chegar e quando enfim chega já esqueci o começo.Abraços confinados.

Nilma Lacerda disse...

Que bom estar para nada, Alexandre Brandão. Tenho estado demais para tudo, e cansada disso, talvez. Os filmes, todos ótimos. Acho que não vi A janela. Se encontrar, te digo onde. No Méier, tem um cara que baixa todos os filmes possíveis. Mas, em quarentena, não posso ir até lá.