Há uns dez dias, um pequeno avião do governo da Bahia foi decolar de um aeroporto em Salvador e atropelou um jumento. Nem o animal nem o piloto se machucaram seriamente, mas o avião sofreu avarias e sua função, transportar doses da vacina contra a Covid-19 para o interior do estado, teve de ser executada por outro.
Nada mais metafórico do Brasil de hoje: o símbolo da
estultícia, o pobre jumento — não sei por que razão ganhou a fama de pouco
inteligente, ignorante, incapaz, mas vou aceitá-la sem crítica —, de um lado, e
o da sabedoria e diligência humanas, a vacina, de outro. Aquele retarda o voo deste,
ou seja, o acidente revela a encruzilhada civilizatória em que estamos. A
imagem de um abismo logo adiante não serve mais ao Brasil, pois já demos o
passo adicional e agora voamos em queda. Ainda que demore, pousaremos não
exatamente no território da morte, mas no Tártaro, lá onde os deuses gregos
supliciavam incorrigíveis como Sísifo. Repetir diariamente tarefas pesadas e
inúteis é o que nos espera.
Relacionar o atual governo à irracionalidade do jumento (ou
do gado) pode nos confortar, mas, ao fazê-lo, deixamos de reconhecer a
inteligência dos senhores no poder. Pois eles têm inteligência, grande até; perversa,
de fato. São conluiados com a morte. Se depois das grandes guerras, um ideal de
civilidade e respeito às diferenças parece ter se transformado em um valor universal
e desejável — ainda que pesem todas as atrocidades e guerras praticadas depois
—, sempre houve aqueles que, por uma razão ou outra, continuaram a entender que
governar é matar. Inventam inimigos em países vizinhos ou distantes, senão no
próprio, onde passam a perseguir os que incomodam pela ancestralidade (os
índios), pela potência (os negros), pela luta por independência e igualdade (as
mulheres), pela subversão dos valores tradicionais (a comunidade LGBTQIA+) ou pela
inconformidade (os artistas).
Quem nos comanda atualmente cultiva uma mentalidade mórbida como a descrita. A morte de quase trezentas mil pessoas (número aproximado de habitantes de Petrópolis, a nonagésima cidade, em termos de população, do Brasil, que conta com 5570 municípios), numa pandemia, não aflige os que militam na necropolítica, decerto os contenta. Queimar florestas é um espetáculo bonito. Dar as costas para a cultura é um ato de preservação de valores. Não faltam exemplos de como se compadecem da destruição.
Tenho um amigo que é exemplo dos que acreditam piamente no diálogo como forma de superar diferenças. Coerente com isso, o diálogo tem sido seu instrumento de ação profissional e política, papel que, aliás, desempenha muito bem. Por isso, fiquei surpreso com uma de suas publicações no Twitter. Diante da ruína civilizatória pela qual passamos, ele disse ter compreendido — não como um estudioso de um período passado, mas como alguém que experimenta, adulto e crítico, a dureza e periculosidade de seus dias — a opção de parte da juventude dos anos de 1960 pela luta armada. Meu amigo em nenhum momento defende que peguemos em arma, mas, com a violência e o autoritarismo inconsequente à solta, ele conclui, a escolha pelo combate no campo do inimigo (a violência) não é destituída de racionalidade. Eu acrescentaria: é exatamente isso que o novo poder quer de nós, portanto, tratemos de decepcioná-lo. Mais Gandhis, menos — como são muitos os que ocupam o espaço oposto ao de um pacifista, não cito nomes, preferindo a imagem talvez distorcida de outro animal — abutres.
Imagem captada na Internet/sem crédito |
8 comentários:
Belo, belo texto. Tocante.
Ronaldo Guimarães k ss20
Como sempre, lúcido, Alexandre Brandão. São mesmo dois Brasis em confronto: o que finca as asas no século XXI, o que marca território no século XVI. "Lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã, como diz um conterrâneo seu. É o que você faz direitinho. Gratidão pela luta não em vão.
Triste, pero que vero. meu colega de Wenceslau Braz. Triste trópico, como já escreveu um outro seu colega!
Ronaldo, Nilma e meu colega de grupo (será o César?), antes de tudo, obrigado pela visita. Vivemos um momento triste demais, temos de acreditar que será passageiro, mas anda difícil dar as mãos à esperança. Assim mesmo, dou.
Caraca, dizer o quê? Verdade verdadeira; queria muito que tudo isso fosse só um pesadelo. Daqueles que quando acordamos dizemos: ufa, que alívio!
Dag, se é um pesadelo, a gente não acorda nunca. Que tristeza!
Como sempre, Alexandre vai na veia! Só me resta reforçar o pedido de desculpas aos burros e aos abutres!
Vermelho
O Deus dos animais há de nos desculpar, Vermelho. Abraços.
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