13.3.21

O jumento e a vacina

Há uns dez dias, um pequeno avião do governo da Bahia foi decolar de um aeroporto em Salvador e atropelou um jumento. Nem o animal nem o piloto se machucaram seriamente, mas o avião sofreu avarias e sua função, transportar doses da vacina contra a Covid-19 para o interior do estado, teve de ser executada por outro.

Nada mais metafórico do Brasil de hoje: o símbolo da estultícia, o pobre jumento — não sei por que razão ganhou a fama de pouco inteligente, ignorante, incapaz, mas vou aceitá-la sem crítica —, de um lado, e o da sabedoria e diligência humanas, a vacina, de outro. Aquele retarda o voo deste, ou seja, o acidente revela a encruzilhada civilizatória em que estamos. A imagem de um abismo logo adiante não serve mais ao Brasil, pois já demos o passo adicional e agora voamos em queda. Ainda que demore, pousaremos não exatamente no território da morte, mas no Tártaro, lá onde os deuses gregos supliciavam incorrigíveis como Sísifo. Repetir diariamente tarefas pesadas e inúteis é o que nos espera.

Relacionar o atual governo à irracionalidade do jumento (ou do gado) pode nos confortar, mas, ao fazê-lo, deixamos de reconhecer a inteligência dos senhores no poder. Pois eles têm inteligência, grande até; perversa, de fato. São conluiados com a morte. Se depois das grandes guerras, um ideal de civilidade e respeito às diferenças parece ter se transformado em um valor universal e desejável — ainda que pesem todas as atrocidades e guerras praticadas depois —, sempre houve aqueles que, por uma razão ou outra, continuaram a entender que governar é matar. Inventam inimigos em países vizinhos ou distantes, senão no próprio, onde passam a perseguir os que incomodam pela ancestralidade (os índios), pela potência (os negros), pela luta por independência e igualdade (as mulheres), pela subversão dos valores tradicionais (a comunidade LGBTQIA+) ou pela inconformidade (os artistas).

Quem nos comanda atualmente cultiva uma mentalidade mórbida como a descrita. A morte de quase trezentas mil pessoas (número aproximado de habitantes de Petrópolis, a nonagésima cidade, em termos de população, do Brasil, que conta com 5570 municípios), numa pandemia, não aflige os que militam na necropolítica, decerto os contenta. Queimar florestas é um espetáculo bonito. Dar as costas para a cultura é um ato de preservação de valores. Não faltam exemplos de como se compadecem da destruição.

Tenho um amigo que é exemplo dos que acreditam piamente no diálogo como forma de superar diferenças. Coerente com isso, o diálogo tem sido seu instrumento de ação profissional e política, papel que, aliás, desempenha muito bem. Por isso, fiquei surpreso com uma de suas publicações no Twitter. Diante da ruína civilizatória pela qual passamos, ele disse ter compreendido — não como um estudioso de um período passado, mas como alguém que experimenta, adulto e crítico, a dureza e periculosidade de seus dias — a opção de parte da juventude dos anos de 1960 pela luta armada. Meu amigo em nenhum momento defende que peguemos em arma, mas, com a violência e o autoritarismo inconsequente à solta, ele conclui, a escolha pelo combate no campo do inimigo (a violência) não é destituída de racionalidade. Eu acrescentaria: é exatamente isso que o novo poder quer de nós, portanto, tratemos de decepcioná-lo. Mais Gandhis, menos — como são muitos os que ocupam o espaço oposto ao de um pacifista, não cito nomes, preferindo a imagem talvez distorcida de outro animal — abutres.


Imagem captada na Internet/sem crédito


8 comentários:

Unknown disse...

Belo, belo texto. Tocante.

Ronaldo Guimarães k ss20

Nilma Lacerda disse...

Como sempre, lúcido, Alexandre Brandão. São mesmo dois Brasis em confronto: o que finca as asas no século XXI, o que marca território no século XVI. "Lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã, como diz um conterrâneo seu. É o que você faz direitinho. Gratidão pela luta não em vão.

Unknown disse...

Triste, pero que vero. meu colega de Wenceslau Braz. Triste trópico, como já escreveu um outro seu colega!

No Osso disse...

Ronaldo, Nilma e meu colega de grupo (será o César?), antes de tudo, obrigado pela visita. Vivemos um momento triste demais, temos de acreditar que será passageiro, mas anda difícil dar as mãos à esperança. Assim mesmo, dou.

Dag Bandeira disse...

Caraca, dizer o quê? Verdade verdadeira; queria muito que tudo isso fosse só um pesadelo. Daqueles que quando acordamos dizemos: ufa, que alívio!

No Osso disse...

Dag, se é um pesadelo, a gente não acorda nunca. Que tristeza!

Unknown disse...

Como sempre, Alexandre vai na veia! Só me resta reforçar o pedido de desculpas aos burros e aos abutres!

Vermelho

No Osso disse...

O Deus dos animais há de nos desculpar, Vermelho. Abraços.