5.4.21

Horas Turvas (do livro Contos de homem, 1995)

 


Quando criança, acreditava neles; hoje tenho certeza de que existem. Atitude ambígua, às vezes os desejo por perto, mas, se chegam, fujo, não, por favor; tenho medo. Acendo a luz, o cigarro, água no gargalo, a madrugada vem, é maior que suas horas e cresce. Então, tento-me acalmar, já vai passar. Já vai passar, sempre a mesma ilusão. Espero que com os anos eles sumam; nada, na outra noite desperto suado, a respiração sôfrega, o coração batendo atravessado. Não adianta ficar escondido no armário e deixá-los ir embora ou torcer para que meu pai entre, "Ouvi barulhos, o que é isso? Ora esqueça, foi só um susto, não chore, homem, não”. Vou à sala, no banheiro ligo o chuveiro, poderia gritar, e o temor talvez sumisse. O grito de repente acorda a vizinha e suas minissaias, ou o vizinho e seus vícios e solidários talvez toquem a campainha oferecendo sexo e pó. Prefiro o soco na parede. A mão sangra, corro, mãe, alcanço o quintal, sento na sala, subo a escada, continuo na sala, mãe, passo pela cozinha, deito no sofá, vou ao quarto, no sofá fecho os olhos, mãe. “O que foi?” Caí da mangueira, estou tão sozinho. “Bobagem, já já é dia.” Vejo as horas: 3:09 h. Tento 222 e o resto do número de um amigo. Ninguém. A televisão ligada parece cuspi-los na sala. Perco a trama e choro, choro escondido e sou pego em flagrante e denunciado. “O que ele tem? Agora deu para isso, é excesso de mimo, coisas da mãe, coisas do pai, é fase.” Dou um gole numa bebida, coloco uma música qualquer, mas a repetição continuada de seus quatro acordes e do estribilho me deixam pior, tiro o disco, quebro o disco, viro a dose, tomo outra. No relógio: 3:10. Todas as noites nesta noite. Arranco a roupa, entro no chuveiro. Relaxo. No boxe, os dedos fingem desenhos nos ladrilhos. A mão toca o corpo, alisa os pés, fica por aí, entre massagens e cócegas, depois vai às coxas e repousa no pau. Demora-se. Sobe ao peito, dança na barriga, retorna ao pau, ele apruma. Esta é para as mulheres que me fugiram pelas mãos. Penteio os cabelos, escovo os dentes. Outro gole. No relógio: 3:09. Armadilha. O rádio anuncia um dia bonito para amanhã; não acredito. Sei rir sem querer e fingir ser o que não sou. Círculo. Círculo. Redemoinho. Na farmacinha não encontro o tranquilizante. Quarto, sala, cozinha, quarto. “Sossega, menino ansioso, parece que tem o diabo!” Diabo? “Um homem como você precisa de uma mulher endiabrada.” Diabo? Não. Apago as luzes. Olho o céu. Uma estrela cai e volta na trilha do ponteiro dos relógios. Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome. Acendo o abajur. Ajeito-me e corro de encontro à parede. Atravesso-a incólume. Sou eles.

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